quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A TRIBO PERDIDA de: Jorge Ferrão

 

OS ZANZIBARIS AMAKHUWAS DE CHATSWORTH
Tudo começa em 1873. Um negreiro, interceptado no Mar Vermelho pela armada britânica, escondia no convés escravos - inocentes almas de Angoche e Itoculo. Embarcaram no porto de Quiloa, Angoche. Os destinos poderiam ser vários. Os mais conhecidos eram a Árabia e os Estados Unidos. No repatriamento pisaram solo da costa de Zanzibar.
Iniciava o final das suas identidades.
O que a história não poderia então prever, era que, os seus traços culturais e linguísticos jamais poderiam desaparecer. Os makuas, da costa norte de Moçambique, num espaço de meses viraram Zanzibaris.
Em 1874, adoptados e, na posse das suas cartas de alforria, (re)embarcam para Sul, Durban, cidade do Natal, província sul-africana. Ainda ali, residem e cultivam o tesouro mais sagrado e precioso das suas vidas. Tornaram-se fiéis aos seus traços culturais e religiosos. Cristalizaram as suas origens linguísticas que ensinam com orgulho aos seus descendentes. A Tribo perdida.
Apesar de abolida desde 1836, ou até mais cedo, o tráfego de escravos perpetuou-se. Pelas mãos do Sultão Mussa-Quanto ou Namualy, principal mentor, outras centenas de almas makuas saíram pela costa da Cafraria, região que compreendia a costa entre Angoche e a Ilha de Moçambique. O Sultão era conotado como o Napoleão de Angoche. Controlava todo o comércio de escravos com o apoio do Xeque Morla-Muno. Foram eles, na realidade, quem impediu a presença portuguesa em Angoche até 1855, quando pela primeira vez a bandeira portuguesa foi hasteada no local. A paz e o final da escravatura só chegaram por volta de 1877. A presença efectiva em Angoche só terá acontecido por volta de 1910, com o desmantelamento dos Xeques Ussene Ibraímo e Farelay.
A tribo perdida fez parte deste grupo de escravos. Embarcaram em Angoche, mas jamais conheceram seus proprietários.

Os sul-africanos solicitaram os makuas ao governo britâncio, para fazer face à escassez de força de trabalho no seu território, numa altura em que a sua economia conhecia um boom inquestionável.
Conhecidos como Zanzibaris, não tardou que as vicissitudes político-culturais os convertessem em “tribo perdida”. Hoje, novamente, são conhecidos como Zanzibaris de Chatsworth.
Originários do litoral norte da província de Nampula, os Zanzibaris Amakhuwas, permanecem ao longo destes 136 anos na terra do Rand. Ali, pela força das circunstâncias apagaram Angoche e Itoculo dos seus horizontes. Aprenderam e assimilaram novos valores culturais. Vestiram-se de novas línguas. Pintaram as suas almas de novas cores e encantos.
Retomaram a sua condição humana. Mas o fundamental foi nunca terem esquecido a sua língua de berço e coração - o Makua.
O Makua-Ecóti do litoral.
Como me recorda Thamen Aboobacar, hoje líder da Associação de Desenvolvimento dos Zanzibaris, continua evidente que ascendem de um grupo do litoral norte de Moçambique. Não desmerecem
Zanzibar como marca da liberdade e segunda pátria. Porém, assumem na integridade e plenitude Durban e RSA como sua terra. Este é o reconhecimento mínimo que se poderia esperar. A RSA devolveu-lhes a dignidade e o respeito. Reconquistaram o amor, a família e uma bandeira.
Redescobrir Moçambique seria um sonho. Eventualmente nunca reencontrariam familiares ou rastos. Mas abraçariam as almas dos seus progenitores.
Zanzibaris Amakhuwas é dos mais pequenos grupos étnicos imigrantes na África do Sul. À sua chegada, em 1874, constituiam um grupo de 143, tendo em 1888 atingido a fasquia dos 500. Na actualidade são estimados em 5000. Desembarcaram no porto de Natal, a bordo do navio britânico H.M.S., e estabeleceram-se na região de Kings Rest, área que se converteu num bairro exclusivo para brancos.
De forma forçada trabalharam no porto e nos Caminhos-de-Ferro da cidade de Durban. Obviamente, ganharam espaço em outras esferas económicas, designadamente na construção, agricultura, pesca, pecuária e ainda nas companhias petrolíferas Shell e BP.
Os sul-africanos, durante a vigência do vergonhoso regime do Apartheid, tiveram dificuldades para os classificar, no seu complexo esquema racial. Designaram-nos Asiáticos. Na verdade, outros Asiáticos, pela legislação de 3 de Fevereiro, 1961, Lei 6220.
Contudo, não ficaram ilibados de outras designações. Em alguns momentos foram conhecidos como Dompas. Posteriormente Zanzibaris, e depois, a Tribo Perdida.
Expulsos de Kings Rest, onde se instalaram no primeiro momento, integram-se na comunidade islâmica de Chatsworth. No convívio com os asiáticos autênticos ganham novo nome -Kaffirs - nome comum na época, porém desajustado do contexto. Aceitação tácita, não isenta de marcas de segregação.
As reservas persistiram ao longo dos anos. Nunca a miscigenação integral foi tolerada. Boa convivência sim, relacionamentos afectivos, não.
Os Zulus, verdadeiros senhores da terra, apelidaram-nos de Amazamzambane.
Igualmente, aceitaram-nos e toleraram a sua presença, mas nunca desperdiçaram a oportunidade de os colocar no seu devido lugar. A tribo perdida passou e passa dificuldades. Aos problemas do quotidiano foram acrescidos os de integração religiosa. Crentes e fiéis à religião islâmica, conservavam seus traços africanos, cuja incorporação é inevitável. Qualquer religião estrangeira assimila parte do animismo e das tradições africanas. A diferença entre o Islão africano e o original, nunca foi muito distinta.
No meio de tanta pressão, das limitações económicas, do racismo e da segregação, os constantes reassentamentos, a manutenção dos traços linguístico-culturais dos makuas foi uma das formas mais sublimes e nobres de resistência. Esta resistência tem chamado a atenção de todos os que se preocupam com as minorias pelo mundo inteiro. Mas, até quando estes grupos poderão manter-se alheios ao processo de globalização e à modernidade, é sempre uma grande questão. Até quando suas tradições resistirão à onda do tempo?
Os Zanzibaris Amakhuwas criaram uma associação denominada Zanzibari Development Trust - tradução não literal.
Esta associação cuida dos seus direitos fundamentais, negoceia em nome dos descendentes e mantém viva a chama de um povo que se espalhou, um pouco por todo o mundo. Em 2004, o Governo sul-africano alocou 9 milhões de Rands para a construção de casas melhoradas para os descendentes dos escravos Zanzibaris Amakhuwas. 250 moradias de classe média foram construídas em Chatsworth. A
área foi, finalmente registada no nome dos Zanzibaris.
Os makuas espalharam-se, no período da escravatura, um pouco por toda a parte. Das Américas não existem memórias nem relatos. Os de Madagáscar, Ilhas Comores e Reunião, Tanzânia,
Quénia e Zanzibar, naturalmente, sãos os mais presentes e recordados. A força e os traços genéticos do maior grupo étnico do país, 1/3 da população moçambicana, emprestam ao mundo um pouco da sua cor, alegria e traços culturais.
Thamin Aboobacar me confidenciou que lhe reconforta saber que são recordados no seu país de origem, na sua região. Isso enche-os de coragem para manter viva a chama que nunca se extinguiu.
Todavia o seu coração se quebra quando verifica que grande parte do seu esforço esfuma-se diante da modernidade.
Globalização. Os mais jovens perdem interesse na língua makua e os rituais evaporam-se num ápice. Qual o próximo passo? Quem sabe se no aniversário dos 137 anos a celebração terá lugar em Angoche? Todos os que se interessam pelos makuas da diáspora cuidarão do ponto de partida para que este se transforme no de chegada e de forma triunfal.
WAMPHULA FAX – 03/04.08.2009

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