sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A ESPUMA DO TEMPO

MEMÓRIAS DO TEMPO DE VÉSPERAS, de Adriano Moreira

Aespumadotempo_capa Não só devido à longa vida do Prof.Dr. Adriano Moreira, como a todos os cargos que desempenhou, além do seu percurso de vida, é esta sua obra essencial para Portugal e todos os PALOPs.
Dele retiro, para já, estas pouca páginas:
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Em 1999, a convite de Onésimo Silveira, o então combativo autarca de São Vicente, fui ali participar nas celebrações do Dia de Portugal. Precisei de fazer uma compra num modesto estabe­lecimento, e o dono, depois de me atender, acrescentou que me reconhecia, e se lembrava da ajuda que eu dera ao Dr. Baltazar Lopes. Quando, em Junho de 2002, o Primeiro-Ministro de Cabo Verde, José Maria Neves, discursou na Aula Magna da Univer­sidade de Lisboa, e fez a avaliação do progresso do país, come­çou por afirmar: "Temos mais água". A política das cisternas e dos poços era de facto importante, mas exigia muito mais.
A permanência em Cabo Verde foi talvez excessiva naquilo que dizia respeito à retaguarda em que se desenvolvia e agudizava o conflito de interesses, e também de projectadas carreiras, tudo afectado pela evolução da conjuntura internacional adversa, e pelas propostas legislativas que se acumulavam com as iniciativas do Ministério do Ultramar.
Um dos pontos crescentemente críticos dizia respeito ao ali­nhamento com o movimento institucionalizador europeu, e à sua relação com a dificuldade de manutenção do modelo colonial português.
A personalidade mais significativa na gestão governamental desta temática era o Dr. José Gonçalo Correia de Oliveira, servido na frente diplomática pelo excelente Embaixador Rui Teixeira Guerra, um dos mais informados e atentos portugueses sobre a evolução europeia, e a repercussão desta nos interesses nacionais.



Correia de Oliveira, que fora meu condiscípulo na Faculdade de Direito, parecia ser o menos indicado dos homens para suscitar a profunda estima que lhe dispensava o Doutor Salazar. Inteligente, embrenhado desde a licenciatura no Conselho Técnico Corpora­tivo, tinha uma experiência apreciável da economia corporativa, e acompanhava os movimentos europeus.
Por outro lado, não obedecia ao padrão composto dos técnicos da área em que trabalhava, partilhava a exigência da moda e do
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estilo de vida da linha, preguiçava com regularidade, e não desde­nhava uma intriga política bem urdida.
Talvez depois da intervenção marcante de Teotónio Pereira na organização corporativa, nenhuma figura tenha sido mais influente na área da política económica, sobretudo nesse período crucial da década de sessenta.
Naquela data era Ministro de Estado adjunto do Presidente do Conselho, a versão de então (1961-1965) do antigo Ministro da Presidência, o qual tinha sido uma criação de Salazar porque, dizia, os ministros não apreciavam receber indicações do Chefe de Gabinete, e assim resolveu os melindres dispensando-se do último.
Da preguiça recordo a dificuldade com que se conseguiu que elaborasse o chamado Plano Intercalar de Fomento para adaptar a planificação em vigor às circunstâncias da guerra, que tiveram uma incidência imediata em toda a engenharia financeira.
O José Gonçalo tivera recentemente um acidente quando passeava a cavalo pela serra de Monsanto, e partira uma perna, o que obrigara a internamento no Hospital do Ultramar, e a visitas de Salazar, que ali ia para despacho de processos inadiáveis, o que lhe aumentou enormemente o prestígio. A inquietação de Salazar com a demora do Plano Intercalar, levou-o um dia a desabafar, dizendo-lhe com paternal malícia: o que me convinha era que o senhor partisse a outra perna.
Este afecto dava muito peso às intervenções do José Gonçalo, que andava a querer organizar o chamado Mercado Único Por­tuguês (Decreto-Lei n.° 44016, de 8 de Novembro de 1961), integrador de todos os territórios, e ao mesmo tempo apanhar o movimento de integração europeia, neste caso tendo em vista a adesão à EFTA (1959) e ao GATT (1962), sem abandonar o verdadeiro objectivo que era conseguir a entrada nas Comunida­des Europeias.
Por esse tempo a questão que assumia era a de atender à defesa dos interesses empresariais que continuavam a basear-se na relação colonial, e abrir caminho aos que previam o colapso da

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estrutura, e pretendiam mudar de ramo na rota da nova Europa. Um estudo de Teixeira Pinto, que circulava a coberto da sua capa académica, advertia que era crescente, e irreversível, a influência de pólos estrangeiros de atracção para cada uma das províncias portuguesas, e o projecto apelava, com dramatismo assumido nas exposições de motivos, no sentido de contrariar essa desagregação.
O desnível do desenvolvimento entre os territórios fazia com que os responsáveis pelo Ultramar não aderissem com entusiasmo ao projecto, porque a tendência previsível seria no sentido de dar proeminência aos interesses metropolitanos, contrariando a auto­nomia progressiva e irreversível, sendo no plano político que se devia antes de mais procurar a redefinição da unidade futura. A questão dos atrasados, cuja evolução histórica foi profunda­mente analisada por Adelino Torres, viria a ser a expressão económica mais clara do predomínio da economia metropolitana sobre a dos restantes territórios, uma previsão que na data da criação do Mercado Único Português atormentava Correia de Oliveira, que se via suspeito de antecipar o neocolonialismo, e em resposta decidiu combater a linha autonomista, acusada de desa­gregadora da integridade definida na Constituição.
Adoptou, aperfeiçoando, o método tradicional, e um pequeno grupo de credenciados conferencistas começou a percorrer o país, promovendo reuniões temáticas, nas quais desmantelavam a política do Ministério do Ultramar, fazendo circular pela imprensa, de maneira comedida, as inquietações.
O acolhimento local parece ter encontrado dificuldades logís­ticas em Trás-os-Montes, de onde vieram pedidos municipais de esclarecimentos, e alguns jornais fizeram chegar, ao Gabinete de Negócios Políticos do Ministério do Ultramar, notas recebidas de pedido de apoio à divulgação das intervenções. Este apontamento destina-se apenas a deixar mostra do persistente método artesanal de lidar com a opinião influenciadora do aparelho político, e também para anotar o espírito juvenil com que o José Gonçalo lidava com estes problemas, colhendo geralmente simpatias abso­lutórias, em que também participei. Neste caso convidei-o para
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almoçar, e então discorremos longamente sobre a situação, verbe­rou ele o abuso das intervenções que andavam a ser feitas utili­zando apoios das administrações locais, sustentou que não havia alternativa para a política de autonomia progressiva e irreversível. Dei-lhe, para informação, um pequeno dossier com a escassa documentação pertinente, que abriu para verificar, surpreso, que as notas de recomendação de apoio à excursão doutrinal eram do seu próprio gabinete. Terminou o exame, fechou o dossier, e declarou, com voz de censura, que não era decente tê-lo subme­tido ao desconforto do discurso em que se empenhara durante o almoço.
O efeito absolutório funcionou como era costume desde o Campo de Santana, mas a leitura sobre o fim próximo da minha intervenção fortaleceu-se.
Note-se que o projectado caminho, que pareceu mais viável de aceitação pelos países da CEE para o relacionamento entre Por­tugal com o seu Ultramar, e as estruturas europeias da então CEE, era o de Portugal continental negociar uma ligação progressiva e gradual, primeiramente no campo económico, embora com res­ponsabilidades políticas, com aquela comissão. O Dr. João Rosas daria consistência ao projecto, que caracterizou a política gover­namental que orientou as negociações efectuadas em 1972, e efectivadas em parte, com grande apoio, sobretudo da França, no período em que Giscard
era Ministro das Finanças e da Econo­mia. Posteriormente, teria lugar um processo autónomo de nego­ciação de cada província ultramarina, caso a caso, e consoante as condições e possibilidade de cada uma, de acordo entre estas e a CEE, em que Portugal interviria para assumir a responsabilidade perante a CEE pelo cumprimento desses acordos. Esta segunda fase do processo relativo à participação do Ultramar nunca ficou, no entanto, bem esclarecida, não passando de projecto interna­cional, como acontece muitas vezes nas negociações diplomáti­cas, quando as situações sobre que se trabalha não estão perfei­tamente definidas para ambas as partes.
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É, porém, certo que persistiram, até 1974 concepções e movi­mentos de grande pressão política, sobretudo de restritos mas importantes interesses económicos, que desejavam e lutavam -nem sempre com clareza e frontalidade, porque o tema lhes não era, na situação internacional que se vivia, favorável - por uma integração mais forte, mais unitária com o Ultramar, e até mesmo radical, permanecendo até ao fim a contradição do modelo se­mântico do Mercado Único Português com a autonomia progres­siva e irreversível.
Regressado a Lisboa, fui logo informado das diligências apa­ziguadoras do Presidente do Conselho a tentar recuperar a auto­ridade pessoal sobre as Forças Armadas, e sem dar mostras de se aperceber que a cadeia de comando estava, ela própria, a deixar deslizar o poder em direcção às bases, com incerteza sobre o patamar da paragem.
Resolvi convocar aquilo que foi o Último Plenário do Conse­lho Ultramarino, que decorreu em Outubro de 1962, acto para o qual me dispensei de pedir concordâncias e amparo. Está acessí­vel a documentação suficiente, com extenso comentário que escrevi para anteceder as Actas publicadas pela Academia Inter­nacional da Cultura Portuguesa. Por isso, recordarei apenas alguns termos de referência que interessam para o entendimento do essencial.
O Conselho era, com o Supremo Tribunal Militar, o mais antigo órgão da administração, e reunia as mais autorizadas personalidades da área colonial, às quais agreguei, nos termos legais, uma larga representação de interesses económicos, cultu­rais e científicos, e todos os antigos Ministros e Subsecretários de Estado do Ultramar que quiseram responder ao convite.
As, nem sempre identificáveis, forças em presença, compreen­deram que se tratava de um palco onde dificilmente deixariam de se tornar visíveis as contradições de interesses e respectivos titulares, pelo que a tormenta foi grande. A censura, que assim documentava a situação interior do Estado, passou a exercer uma descontrolada acção, suprimindo textos que podem ainda estar
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amontoados nos arquivos dos Ministérios mais interessados no silêncio, designadamente a Presidência do Conselho e o Ministé­rio dos Negócios Estrangeiros, e até nos arquivos dos serviços de segurança, que não conseguiam perceber em que sentido estavam a ser instrumentalizados.
Pequenos factos faziam suspeitar que tinham levado aos extre­mos da tensão a luta pelo poder, que já era verdadeiramente a da tomada de posição para suceder ao Presidente do Conselho. Uma distraída proposta do Almirante Sarmento Rodrigues, feita em recente reunião de um restrito Conselho de Ministros para o qual fora convidado, aumentava a concentração de atenções no Plená­rio. O Almirante tinha ali dito que todos os serviços nacionais deveriam ser subordinados a um Vice-Presidente do Conselho, que lhe parecia dever ser o Ministro do Ultramar, dirigindo um Ministério de simples coordenação das administrações autónomas das Províncias. Quando caiu em si era tarde, e a distracção, a que depois chamava atrevimento, teve sequelas que não precisam de especificação.
O Engenheiro Jorge Jardim escreveu de Moçambique a apoiar firmemente a iniciativa da convocação, e até o atrevimento do Governador, o que fazia erradamente suspeitar aos inquietos que o não faria sem estar seguro do acordo de Salazar.
O transmontano Norberto Lopes não deixou de sair em defesa do processo, com um discutido artigo - A coruja da sabedoria, publicado no seu Diário de Lisboa, que Correia de Oliveira mandou censurar, e eu mandei publicar, porque tornava claro que no Conselho se tratava de "forte reacção do Ministro contra o movimento que se desenha contra o regime de autonomia das províncias, movimento que tem o apoio em conhecidos críticos da transferência de organismos para o Ultramar e adversários do que tem sido chamada a política de descolonização económica das províncias".
Deve esclarecer-se um facto que anda a ser objecto de leituras contraditórias, a posição do Doutor Marcello Caetano em relação ao Plenário.
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Convidado, como todos os antigos Ministros do Ultramar, a participar na reunião, escreveu-me uma carta, já publicada, de 9 de Outubro, a escusar-se porque "afastado total e definitiva­mente da vida pública, longe dos problemas, desconsiderado pelo Governo, a minha presença nessa reunião seria inútil."
Todavia, iniciados os trabalhos do Plenário, apareceu um Comentário escrito em papel timbrado de Marcello Caetano, mas não assinado, que, elaborando sobre as ideias assumidas por escrito por Sarmento Rodrigues, considerava tímidas as suges­tões, e avançava com uma breve proposta de modelo federal. Alguém iniciou a lenda - talvez Raul Rego, na sua História da República, de que se tratou de um parecer que lhe fora solicitado por Salazar, o que não tem fundamento conhecido, porque a única manifestação que este teve foi a de não apreciar a circula­ção desse documento logo que lhe foi enviado pelo Secretariado, como acontecia com todos os documentos que iam sendo apre­sentados.
De facto, quando Marcello Caetano tomou posse de Presidente do Conselho, com o compromisso de manter a política colonial do antecessor, o documento reapareceu a circular em Moçambique, e então queixou-se de que se tratava de uma manobra para o desacreditar, criando a dúvida, que já mencionei algures, sobre se o papel existia, se tinha escrito o papel, ou se alguém escre­vera em papel dele. Admito que o texto tenha sido fornecido ao Dr. Almeida Cotta, Secretário-Geral do Ministério e seu amigo, que o usou para toscamente contrariar o protagonismo crescente de Sarmento Rodrigues.
Publiquei uma avaliação que julgo suficiente, pelo que me respeita, do acto histórico que foi o Plenário, o qual decorreu em ambiente de tormenta, e com um relatório final da autoria do Prof. Joaquim da Silva Cunha, que tinha solidariedades pessoais assu­midas e conhecidas, e amenizou a expressão do real pensamento dominante na reunião.
Pela imprensa ultramarina apareceram desabafos contra a ten­tativa de minorar ou apagar o debate aberto que tivera lugar, o
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alarme do Parlamento informal, por onde corria o habitual sus­surro, que condicionava a opinião do aparelho político deu sinal, a debilidade perante a cadeia de comando militar manifestou-se pelo acrescentamento anónimo, e grosseiramente visível, do lou­vor costumeiro ao texto original do decreto de exoneração do Governador-Geral de Angola. O ponto final posto no reformismo estava colocado, e não desejo alterar nada aos comentários com que finalizei o relato publicado sobre o Plenário, repetindo os parágrafos seguintes, relativos à reunião final com o Presidente do Conselho.
"Na conversa que tivemos no Forte do Estoril, e que foi longa, depois de o Plenário terminar, não lhe manifestei espírito diferente daquele que consta da carta para o Almirante Sarmento Rodri­gues, como também não evitei dizer claramente o que pensava da anarquia que se tinha instalado na Administração, em defesa de interesses sectoriais, que nem se davam ao trabalho de ter rosto, limitavam-se a demonstrar que tinham máquina.
Em relação às coisas desagradáveis, o Presidente do Conselho tomou a atitude do pretor, condenando-as com higiénica distân­cia, mas assumiu o facto de que o seu poder estava em erosão, explicou o alheamento não como indiferença mas como medita­ção, entendia que a descentralização já existente tinha demonstrado, especialmente em Angola, a incapacidade política em que se encontrava de controlar iniciativas aberrantes que ameaçariam multiplicar-se, e assim não estava seguro de poder manter-se como Presidente do Conselho se continuasse na linha que lhe demonstrara perigos graves, lhe fazia prever novas confrontações, pelo que lhe era imperativo mudar de política.
Disse-lhe que acabava de mudar de Ministro, o que não estranhou, mas sugeriu, já de pé ao cimo da escada e a despedir--se, que a conversa deveria continuar noutro dia, e acrescentou que não lhe era fácil encontrar rapidamente um substituto. Res­pondi que considerava a decisão tomada definitiva e que seria possível encontrar um Ministro para a nova linha parando em
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In A Espuma do Tempo – Memórias do Tempo de Vésperas de Adriano Moreira

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