sexta-feira, 12 de outubro de 2012

"a cruz e a espada em Moçambique", por Cesare Bertulli (1974)

 

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Cruzeespada_capa1 Não falo, neste momento, dos quatro morticínios de Mokumbura, largamente documentados pelos corajosos padres de Burgos. Falarei mais adiante. Por ora, limito-me ao episódio de Wiriyamu que tanto escandalizou a opinião pública mundial, em Julho do passado ano (1973).
Wiriyamu é um outro caso típico de morticínio premeditado e ordenado superiormente. Não é o mais importante, nem sequer o mais recente; talvez seja apenas um dos mais documentados e dos mais conhecidos. Saiu à ribalta das crónicas por circuns­tâncias especiais, por ter sido explorado como chave política aquando da visita do presidente do conse­lho português a Londres, por ocasião do aniversário da pluri-secular aliança de Portugal com a In­glaterra.
A descrição do morticínio feita pelo padre Adriano Hastings, no «Times», em Julho de 1973, não constituía sequer uma novidade, porque eu pró­prio pelos serviços da «Cable Press» de Roma, tra­duzira e fizera publicar o relato completo, em 4 de Junho precedente. Recebera-o de Tete, por portas e travessas, no mês de Abril e traduzira-o imediata­mente. Servira-me em Kamen, na Alemanha, para desmascarar a duplicidade de Bonifácio de Miranda que, numa reunião organizada pelo pastor luterano Lothar Kuhl, em 12 e 13 de Maio, sob o tema «In­formação ou Manipulação» tentava, com a ajuda de alguns jornalistas e operadores da televisão, influen­ciar a opinião pública da Alemanha Federal, donde provinham para Portugal substanciais ajudas em vários campos. Do mesmo relato e do de Mokumbura, me servi para a defesa do soldado americano Larry Johnson (a tradução inglesa ficou nas actas do julgamento). Este soldado negro rebelara-se porque lera na revista «Ebony» que os Estados Uni­dos estavam implicados na repressão levada a cabo nas colónias portuguesas.10
O relato do morticínio efectuado a 16 de Dezem­bro de 1972 foi estabelecido com base nos testemu­nhos de alguns sobreviventes de Cahola e de Wiriyamu, escapados miraculosamente à carnifi­cina. Não interessa aqui dar a lista dos nomes nem os pormenores horripilantes de algumas execuções; interessa muito mais revelar quem foram os ordenadores do morticínio e a quem foram atribuídas as responsabilidades. É quanto contém o documento n.° 506 do meu arquivo pessoal do qual apenas refe­rirei o conteúdo.
Em Setembro de 1972, a base aérea AB 7 de Matundo (que é também aeroporto civil) fora ata­cada por elementos da FRELIMO com alguns mís­seis 122; acções de flagelação tinham sido feitas pêlos mesmo contra a cidade de Tete em várias oca­siões. Nos princípios de Dezembro um destaca­mento do exército caíra numa emboscada na zona de Wiriyamu, a vila que, com Chaola e Juwáu opu­nha uma certa relutância à categoria de «aldeamento». (As três vilas encontram-se a 25 quilómetros ao sul de Tete, no triângulo entre a estrada interna­cional n.° 2, o Zambeze e o Luenha.) Aproximavam-se as festas do Natal e fim do ano, a população de Tete estava muito inquieta e o mesmo sucedia com o pessoal de Cabora Bassa que, por turnos, em heli­cóptero ia a Tete passar o fim-de-semana. Era pre­ciso, a todo o custo, aniquilar a acção dos guerri­lheiros limpando a zona da sua presença e das minas colocadas nas vias de comunicação, a come­çar nas vilas renitentes à categoria de «aldeamento».
O comando da ZOT11 com o consentimento do governador (civil-militar) de Tete, o coronel pára-quedista Martins Videira, deu ordem ao coman­dante da Base Aérea AB7 de bombardear as três vilas. O comandante recusou-se, depois de ter so­brevoado em helicóptero, repetidamente, as três vilas e ter verificado que eram vilas de todo tradi­cionais (casas espaçosas com tectos cobertos de palha velha, em espaços controláveis, e gado abun­dante) e não refúgios provisórios dos guerrilheiros em contínuas deslocações. A ordem foi repetida e o comandante, em 16 de Dezembro, mandou, com re­lutância, três G Fiat 91 com ordens para os pilotos bombardearem apenas as imediações das vilas. Os mortos nos bombardeamentos foram pouquíssimos; mas os «comandos» da sexta companhia, com ofi­ciais europeus, acompanhados por elementos negros dos GE,12 vestidos de «comandos», transportados em cinco helicópteros cercaram as vilas arrebanhan­do os fugitivos e liquidando-os inexoravelmente pelas várias formas descritas no relato do morti­cínio.
Em Juwáu não houve sobreviventes. Em Chaola escaparam seis quase por milagre, depois de serem gravemente feridos. Foram: António Mixoni, de quinze anos, que reconheceu alguns dos autores do morticínio e que viu cair a seu lado os pais, irmãs e irmãos; Serina Irisani, Tembo e Podista que se encontravam no «aldeamento» de Mphádue; Manuel que se encontrava algures no Zobué. Dos sobrevi­ventes de Wiriyamu não posso dizer quantos são nem onde estão, porque ainda correm sério perigo. Atrás deles, anda ainda o chefe Wiriyamu de cujo povoado tomou o nome.
O relatório secreto do Padre Sangalo, meu ca­ríssimo amigo, faz notar várias coisas interessantes:
1. A ordem para eliminar todos, repetida em voz alta pelo agente da DGS, Chico, até ao oficial dos «comandos» que se inclinava para a clemência. Deixar sobreviventes era muito perigoso. O mesmo Chico foi morto por uma granada, a 11 de Agosto de 1973, quando tomava banho em sua casa. Quem atirou a granada?
2. Parece que os agentes da DGS eram to­dos africanos: os «comandos», pelo contrário, eram prevalentemente africanos com oficiais brancos; de um deles (A) foi escutado este comentário: «não há maior sadismo que este: obrigar os negros a espancar os seus irmãos negros para se poder dizer que se batem entre eles».
3. Dois oficiais portugueses pára-quedistas (B e C) que passaram nos lugares do mor­ticínio confirmaram-nos aos autores do rela­tório, acrescentando: «Já vimos muitas carni­ficinas, mas nenhuma como esta. Nunca mais a poderemos esquecer.»
4. D e E que encontraram alguns feridos em fuga, avisaram a autoridade administrativa que, porém, não se quis interessar. Os feridos conseguem, no entanto, atingir o hospital de Tete, onde foram tratados pelas Irmãs Marta, Milagros, Angélica e Lúcia. Os médicos mili­tares do hospital ficaram fortemente impres­sionados e preocupados porque aqueles feri­dos poderiam ter criado problemas. De facto criaram-nos.
5. António Mixoni, logo depois de curado, foi recebido na missão de S. Pedro, a 3 qui­lómetros de Tete, para que pudesse estudar. Tendo falado de mais, a DGS procurou-o. O padre Sangalo conseguiu pô-lo a salvo (...) mas foi expulso de Moçambique repentina­mente: «Por ter subtraído à protecção da DGS um cidadão português». António Mixoni, ao saber que era procurado, suplicou ao pa­dre, tremendo de medo: «Não me mande para a DGS, não quero morrer como morreram os meus pais; se me quer realmente bem, não me faça uma coisa dessas».
6. Algumas pessoas que conseguiram che­gar ao lugar do morticínio alguns dias depois (F, G, H, etc.) testemunharam que o cheiro dos cadáveres não completamente queimados era insuportável e que o posto estava infes­tado de chacais e cães vadios.
7. O comunicado oficial de guerra da ope­ração de Wiriyamu, para justificar o número elevado de mortos, falou de infiltração de uma centena de «turras» que, confundindo-se com a população, tinham tornado necessário, para os eliminar, fazer algumas vítimas entre os civis.
8. Depois do morticínio, as outras vilas compreendidas no triângulo formado no cru­zamento da estrada n.° 2 com o rio Luenha e com o Zambeze e deste com o Luenha tive­ram a ordem de «aldeamento». No «aldeamento» de Gama concentraram-se os habi­tantes de Rego, Cebola e Raisse; no de Mphádue os de Guzinho, Malangwe, Gandali, Mikombo, Nyanthumba, Capimbi, Nhauterre. O primeiro a 30 e o segundo a 4 quilómetros de Tete. Muitos fugiram (calculam-se em cerca de 200), mas surpreendidos pela tropa, foram eliminados pouco depois.
«Seja bem claro» escreveu o padre Sangala em conclusão do seu relatório secreto «que a matar estiveram por toda a parte os «coman­dos» e os africanos dos GE ou «flechas». Os organizadores do morticínio, porém, foram os comandantes da ZOT com o consentimento do governador de Tete. Este foi castigado por ter deixado circular a notícia do morticínio e per­deu o seu posto para se juntar ao comandante--chefe Kaúlza de Arriaga, chamado a Lisboa, pouco antes dele, por não ter conseguido liqui­dar a guerrilha».
A carnificina de Wiriyamu, Juwáu e Chaola, mais documentada que tantas outras pela experiência (triste experiência) adquirida pêlos missionários e pela coragem que cada vez mais vão conquistando, é um exemplo típico das responsabilidades graves do exército de repressão. Que reservará ainda o su­cessor de Kaúlza de Arriaga? A sua fama não é cer­tamente de clemência! Mas o sangue dos inocentes (foram mais de cem as crianças ao longo de dez anos nas três vilas) recairá sobre os seus assas­sinos!
In A Cruz e a Espada em Moçambique(1974), de Cesare Bertulli, pág. 89 e seguintes

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