sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A censura disfarçada

 

9/10/2012 14:34, Por Venício A. de Lima - de São Paulo
Censura
A grande mídia usa como estratégia o bordão da ameaça à liberdade de expressão para escamotear a realidade da concentração midiática no Brasil
Desde a Grécia antiga, a igualdade perante a lei e a liberdade de expressão constituem a base da democracia.
Em fala recente a professora Marilena Chauí reafirmou que uma das características fundamentais da democracia é constituir uma “forma sociopolítica definida pelos princípios da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público). [Nesta forma sociopolítica], todos são iguais porque são livres, isto é, ninguém está sob o poder de outro, uma vez que todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa)” (Chauí, 2012).
Admitida esta conceituação de democracia, pergunto: a ausência de voz e de participação – vale dizer, a ausência de isegoria – poderia ser identificada como uma forma difusa de censura decorrente da estrutura de poder em determinada formação social?
O Parágrafo 2º do artigo 220 do capítulo sobre a Comunicação Social de nossa Constituição reza: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Descarto, preliminarmente, o que tem sido chamado de “censura judicial” ou “censura togada” por compartilhar a posição expressa pelo ex-ministro Eros Grau em julgamento no Supremo Tribunal Federal quando afirmou: “O juiz está limitado pela lei. O censor não. É descabido falar em censura judicial. Não há censura. Há aplicação da lei. A imprensa precisa de uma lei” (RCL 9428).
Pergunto, então: de onde parte a censura? Quem são os censores?
Contrariamente ao “eixo discursivo” dominante na grande mídia, pretendo argumentar que o Estado não é o único censor. Muitas vezes, nem sequer o censor mais atuante. E, mais ainda, muitas vezes o Estado pode e deve ser o garantidor da liberdade de expressão, vale dizer, da ausência de censura.
Por óbvio, existem vários tipos de censura e diferentes censores.
Há um tipo de censura, por exemplo, que atinge a liberdade da imprensa e decorre da própria estrutura do mercado das empresas de mídia. Esse fato vem sendo reconhecido desde a década de 70 do século passado pelo chamado PICA-Index (Press Independence and Critical Ability) que registra a independência e a capacidade crítica da mídia. O PICA-Index incluiu entre seus indicadores as “restrições econômicas” entendidas como conseqüências da concentração da propriedade ou de problemas que decorram da instabilidade econômica das empresas jornalísticas. Por outro lado, o próprio Press Freedom Survey, publicado anualmente pela ONG liberal Freedom House, trabalha com uma definição de liberdade da imprensa que inclui variáveis econômicas. Vale dizer, considera que restrições à liberdade da imprensa podem decorrer de fatores econômicos alheios à interferência do Estado (Holtz-Bacha, 2004).
Registre-se que a censura da palavra, da expressão é muito anterior à existência não só de Gutenberg – vale dizer, da possibilidade de imprimir – como é também anterior à existência da instituição que passou a ser conhecida como “imprensa” e hoje chamamos de “mídia”.
No caso brasileiro, a ausência de voz e de participação tem sido identificada desde a primeira metade do século 17.
Para descrever a situação em que se encontrava o “Estado do Brasil” nesse período, o pregador jesuíta Padre Antonio Vieira saúda o recém chegado vice-rei, Marques de Montalvão, com um de seus famosos sermões, o da “Visitação de Nossa Senhora”, proferido no dia 2 de julho de 1640. Vieira recorre ao Evangelho de Lucas e descreve um quadro sombrio da Terra de Santa Cruz. Afirma ele:
“Bem sabem os que sabem a língua latina, que [a] palavra, infans, infante, quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste esteve o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. [...] O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão.”
Para Vieira, portanto, o maior dos males do enfermo Brasil era ter sido mantido no mesmo estado do infans, infante, isto é, sem fala, sem voz.
Quatro séculos depois, o grande educador Paulo Freire parte exatamente desse sermão de Vieira para identificar uma característica dominante da formação histórica brasileira que chama de “cultura do silêncio”. Ele sustenta que os séculos de colonização portuguesa resultaram numa estrutura de dominação à qual corresponde uma totalidade ou um conjunto de representações e comportamentos. Esse conjunto de “formas de ser, pensar e expressar” é tanto um reflexo como uma consequência da estrutura de dominação.
A cultura do silêncio caracteriza a sociedade a que se nega a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhe oferecem “comunicados”, vale dizer, é o ambiente do tolhimento da voz e da ausência de comunicação, da incomunicabilidade. Mas não basta ter voz porque o “mutismo” da “cultura do silêncio” – insiste Freire republicanamente – “não significa ausência de resposta, mas sim uma resposta que carece de criticidade”. Na verdade, é necessário que essa voz expresse uma opinião cidadã formada livremente e que ela seja ouvida no espaço de deliberação pública e autogoverno (Lima 2011c e 2011b).
Não seria a “cultura do silêncio” uma forma histórica de censura na medida em que sonega de boa parte da população a isegoria, isto é, a liberdade fundamental de se expressar e participar do debate público democrático?
Para responder a essa questão, há de se fazer uma distinção fundamental, embora de maneira muito simplificada, entre duas noções de liberdade, uma na tradição liberal e outra na tradição republicana. [Existe uma vasta bibliografia sobre o tema. Uma introdução geral pode ser encontrada em Honohan (2002). Em português, há o já clássico de Skinner, 1999.]
A liberdade é um elemento pervasivo no pensamento moderno. Ela é parte intrínseca da história do que chamamos modernidade e tem dominado o pensamento ocidental nos últimos dois, três séculos. No mundo bipolar da Guerra Fria, a liberdade serviu como argumento central na batalha ideológica do Ocidente contra o Oriente (Nordenstreng, passim). A liberdade talvez seja o valor mais invocado do mundo contemporâneo, apesar de entendido nas mais variadas maneiras (Honohan, passim).
Na perspectiva liberal, prevalece o caráter pré-político e privado da liberdade. Entende-se a liberdade como se ela pudesse ser desvinculada da política e como um direito formado exclusivamente na esfera privada. A versão mais conhecida dessa perspectiva é a que reduz a liberdade somente à ausência de interferência externa na ação do indivíduo, a chamada liberdade negativa.
Já na perspectiva republicana, prevalece a idéia de liberdade associada à vida activa, ao livre-arbítrio, ao autogoverno, à participação na vida pública, na res publica. É daí que vem o significado original da palavra política, de polis, isto é, tudo que se refere à cidade, civil, público.
O poder arbitrário (dominação) é incompatível com a liberdade cidadã, construída politicamente e entendida não como uma possessão privada desfrutada pelo indivíduo isolado, mas como o pertencimento a um mundo onde todos podem revelar a si mesmos, livremente, diante dos outros, sem qualquer medo de punição (Saxonhouse, passim).
Essa liberdade republicana se associa historicamente à democracia clássica Grega, à república romana e ao humanismo cívico do início da idade moderna.
A liberdade liberal tem sua matriz no liberalismo que se constrói a partir do século XVII na Inglaterra, depois como reação conservadora à Revolução Francesa e se consolida no século XIX em complemento à idéia de mercado livre, isto é, à liberdade privada de produzir, distribuir e vender mercadorias.
São tradições distintas: uma se origina em Atenas, passa por Roma e se filia modernamente a pensadores como Maquiavel, Milton e Paine. A outra a Hobbes, Locke, Benjamin Constant e, mais recentemente, a Isaiah Berlin.
Embora ambas as tradições reconheçam a liberdade de expressão (isegoria) como fundamental para a definição da democracia, elas divergem radicalmente sobre o papel que o Estado desempenha em relação a essa liberdade.
Na tradição liberal, o Estado deve abster-se totalmente de qualquer interferência em relação à liberdade de expressão dos cidadãos. Na verdade, a liberdade de expressão é considerada uma proteção do indivíduo em relação ao Estado cuja interferência é entendida como cerceamento da liberdade individual, como uma forma de censura.
Na tradição republicana, ao contrário, a liberdade de expressão é entendida como liberdade de deliberação em nome do interesse público. Nas democracias a intervenção do Estado é bem-vinda na medida em que são os cidadãos que definem, através de sua participação política, as regras (leis) que serão seguidas para que a liberdade seja desfrutada. A liberdade de expressão é o instrumento básico dessa participação e, embora se realize tanto no espaço público quanto no espaço privado, neste, ela só é possível através da política, isto é, de sua defesa pública. Cabe ao Estado garantir que todos os cidadãos possam exercer igualitária e plenamente a liberdade de expressão, a isegoria.
Vale registrar que, mesmo em países onde a tradição liberal é dominante, há jurisprudência consolidada sobre o papel do Estado como fiador das liberdades e, especificamente, da liberdade de expressão. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos.
O jurista liberal e professor Owen Fiss da Universidade de Yale, em pequeno, mas precioso livro – A Ironia da Liberdade de Expressão-Estado, Regulação e Diversidade na Esfera Pública – publicado originalmente em 1996, introduz o conceito de “efeito silenciador do discurso” quando discute que, ao contrário do que apregoam os liberais clássicos, o Estado não é um inimigo natural da liberdade. O Estado pode ser uma fonte de liberdade, por exemplo, quando promove “a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos – distribuir megafones – para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes não há outra forma” (p. 30).
Fiss usa como exemplo os discursos de incitação ao ódio, a pornografia e os gastos ilimitados nas campanhas eleitorais. As vítimas do ódio têm sua auto-estima destroçada; as mulheres se transformam em objetos sexuais e os “menos prósperos” ficam em desvantagem na arena política.
Em todos esses casos, “o efeito silenciador vem do próprio discurso”, isto é, “a agência que ameaça o discurso não é Estado”. Cabe, portanto, ao Estado promover e garantir o debate aberto e integral e assegurar “que o público ouça a todos que deveria”, ou ainda, garanta a democracia exigindo “que o discurso dos poderosos não soterre ou comprometa o discurso dos menos poderosos”.
Especificamente no caso da liberdade de expressão, continua Fiss, existem situações em que o “remédio” liberal clássico de mais discurso, ao invés da regulação do Estado, simplesmente não funciona. Aqueles que supostamente poderiam responder ao discurso dominante não têm acesso às formas de fazê-lo (pp. 47-48), vale dizer, não têm acesso ao debate público controlado pelos grandes grupos de mídia.
Muitas vezes esse impasse provoca, desgraçadamente, o recurso ao terror da violência como forma de expressão de ideias (Freitas, 2012).
A vertente liberal norte-americana representada pelo professor Fiss, todavia, não tem sido a prevalente no Brasil. Muito ao contrário. Na nossa história, tem prevalecido um liberalismo excludente tanto de liberdade quanto de cidadania.
O liberalismo brasileiro sempre conviveu e continua a conviver, sem qualquer problema, com a desigualdade – vale dizer, com ausência de isonomia – desde a escravidão até questões contemporâneas envolvendo as relações entre raças e gêneros [vários autores têm tratado das características do liberalismo brasileiro, dentre eles lembro Alfredo Bosi, Emília Viotti da Costa e Raymundo Faoro].
A prevalência desse liberalismo excludente foi exacerbada nas últimas décadas pela onda neoliberal que varreu o planeta. Junto às privatizações veio o discurso do “fim do Estado nação” e do “Estado mínimo”, portanto, a rejeição à interferência do Estado, em especial no que se refere às garantias para que todas e todos possam exercer o princípio da isegoria.
A exacerbação neoliberal provoca um estranho paradoxo no que se refere ao debate – ou à sua ausência – em torno da liberdade de expressão.
Os professores mineiros Juarez Guimarães e Ana Paola Amorim (2012) identificam o que chamam de “impasse do encarceramento” ao tratarem da noção liberal de liberdade. Recorro a eles, em texto ainda inédito, quando afirmam: “O estreitamento argumentativo liberal reside principalmente na desvinculação entre a liberdade de expressão e as condições de autogoverno. Em sua história, o liberalismo formou (…) o seu conceito de liberdade, separando-o da noção de participação política e autogoverno. Nessa autonomização da liberdade de expressão das condições de autogoverno residiria, então, o caminho de sua própria autonomização conceitual da noção de liberdade.
- O impasse do encarceramentoliberal refere-se à tradição argumentativa, amplamente disseminada e até mesmo referencial, que explica a gênese da liberdade de expressão e seu desenvolvimento única e exclusivamente à tradição liberal. Assim, o seu debate é circunscrito ao pluralismo apenas no interior da tradição liberal, à sua gramática, à sua variação conceitual e à sua linguagem.
- O argumento liberal sobre a liberdade de expressão é paradoxal: [ela] não se discute… fora dos marcos liberais! A fórmula propagandística que resulta deste antipluralismo e sectarismo genéticos é que toda proposta, argumento ou legislação que contrarie os modos liberais de pensar a liberdade de expressão são imediatamente denunciados como contrários à própria liberdade de expressão.
Não nos deveria surpreender, portanto, que continue a existir uma reação tão forte no Brasil às eventuais propostas de política pública regulatória para a mídia [para uma avaliação das políticas públicas de comunicações no Brasil nos últimos anos ver Lima (2012b)].
O “impasse do encarceramento” faz com que até mesmo o debate sobre essa política – vale dizer, sobre a intervenção do Estado como garantidor de liberdades – essencial na perspectiva republicana, passe a ser entendido como uma ameaça à própria liberdade de expressão.
Esse paradoxo se manifesta no debate – ou na ausência dele, repito – em relação à liberdade da imprensa.
Evocando a máxima dos antropólogos de que “toda identidade é uma diferença” quero agora comparar a liberdade de expressão com a liberdade da imprensa. Ao compará-las, espero melhor desvendar a identidade de cada uma [para uma detalhada discussão sobre as diferenças entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa ver Lima (2012a)].
Qual é a diferença entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa? Qual o significado original das palavras que expressam essa diferença? Como os documentos legais tratam essas liberdades? Quais as pré-condições materiais para que elas existam?
Vamos começar com o significado original das palavras speech (expressão), print (imprimir), press (imprensa) e the press (a imprensa). Creio que herdamos este significado da língua inglesa.
Registre-se que o conceito de liberdade de expressão é muito anterior ao debate clássico ocorrido na Inglaterra do século XVII. Na Grécia antiga havia pelo menos quatro palavras que significavam liberdade de expressão – como já vimos, um dos princípios fundamentais da democracia e essencial para a realização do homem cívico na polis: isegoria, isologia, eleutherostomia eparrhesia (Stone, esp. cap. 17) [para um extenso e erudito debate sobre o papel da liberdade de expressão na democracia clássica ateniense ver Saxonhouse (2006)].
Na Inglaterra, por outro lado, a expressão “freedom of speech” só aparece pela primeira vez nos famosos Institutes of the Laws of England, publicados por Sir Edward Coke, entre 1628 e 1644.
Embora em inglês como em português a palavra imprensa (press) possa significar tanto (a) a máquina de imprimir [impressora, tipografia] como (b) qualquer meio de comunicação de massa ou, ainda, (c) o conjunto deles, a passagem do primeiro para os outros sentidos altera radicalmente o locus do sujeito da liberdade de expressão vinculado a cada um dos três sentidos, vale dizer, do indivíduo-cidadão para a instituição-empresa. Ademais, existe em inglês uma distinção entre speech (expressão, palavra), print (imprimir), press (imprensa, impressora, tipografia) e the press (a imprensa) que, na maioria das vezes, as traduções para o Português insistem em ignorar.
Um exemplo: se formos ao panfleto seiscentista Areopagitica de John Milton (1644), clássico reiteradamente lembrado na defesa da liberdade da imprensa, veremos que ele se refere ao direito, então considerado natural, do indivíduo-cidadão expressar (speech) e imprimir (print) suas idéias no exercício de seu livre-arbítrio e sem restrições externas.
Escrito para combater uma Ordenação do Parlamento inglês regulando a impressão de documentos, panfletos e livros (An Ordinance for the Regulating of Printing, 1643), o argumento de Milton gira em torno da capacidade individual de livre-arbítrio e da conseqüente necessidade de cada um se expressar e se expor às diferentes versões sobre um assunto para alcançar a verdade.
- Dai-me a liberdade para saber, para falar e para discutir livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades – afirmava Milton em passagem famosa do Areopagitica (p.169).
O Areopagitica, portanto, cujo subtítulo é um discurso de John Milton pela liberdade de imprimir sem licença, dirigido ao Parlamento da Inglaterra (A speech of Mr. John Milton for the liberty of unlicenc’d printing to the Parlament (sic) of England), não poderia estar se referindo à imprensa (the press), no seu significado atual.
Ademais, no texto, não há referência a the press, mas sim a printing; e, na Inglaterra do século XVII, não existiam “jornais”, no sentido contemporâneo e, muito menos, empresas comerciais de mídia (de meios impressos e/ou eletrônicos).
Aliás, só há registro da palavra jornal – newspaper – na língua inglesa no final do século XVII, em 1670!
Apesar disso, tanto na tradução clássica de Hipólito da Costa publicada no Correio Brazilienze, em 1810, quanto na edição contemporânea existente entre nós do Areopagitica (1999), printing (imprimir) é traduzido por “imprensa” e seu sentido dominante em Português tem sido “a imprensa” (the Press), instituição moderna que significa o conjunto dos meios de comunicação ou a mídia. O próprio subtítulo passa a ser “Discurso pela Liberdade de imprensa ao Parlamento da Inglaterra”, enquanto o texto original se refere à liberdade de imprimir sem licença.
Como os documentos de referência – legais ou não – tratam essas liberdades?
A distinção clara entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa também aparece em documentos (legais ou não), que, mesmo assim, são sempre indistintamente evocados na defesa da liberdade da imprensa. Vejamos, cronologicamente:
Na Declaração de Virgínia, de 1776, oArtigo XII fala especificamente em liberdade da imprensa (freedom of the press).
Já a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, de 1789/1791,assegura a liberdade de expressão (freedom of speech), a liberdade da imprensa (freedom of the press), a liberdade religiosa, a separação entre Igreja e Estado, o direito de reunião e o direito de petição.
A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa, de 1789, fala do direito à “livre comunicação das idéias e das opiniões” e que “todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente” (grifo acrescido).
Por outro lado, tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, e a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, de 2000, falam do direito da “pessoa” (indivíduo) à liberdade de opinião e expressão, especificando que este direito inclui “a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios (media, no original em inglês) e independentemente de fronteiras” [Artigos 19, 13 e Princípio 1º, respectivamente].
A nossa Constituição, de 1988, por sua vez, refere-se à liberdade individual de manifestação do pensamento (inciso IV do Artigo 5º), e à “plena liberdade de informação jornalística” (§ 1º do Artigo 220). A única ocasião em que aparece a expressão “liberdade de imprensa” no texto Constitucional é em relação às medidas que podem ser tomadas pelo Presidente da República na vigência do Estado de Sítio (inciso III do Artigo 139). Não é, curiosamente, no Capítulo da Comunicação Social.
E finalmente, a Declaração de Chapultepec, de 1994, se refere claramente a duas liberdades, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.
Como se vê, todos esses documentos se referem distintamente (a) à liberdade daimprensa; (b) à liberdade de expressão (de idéias e/ou de opiniões); ou (c) às liberdades de expressão (de idéias e/ou de opiniões) e de imprensa. Isso significa que, historicamente, essas liberdades têm sido entendidas como distintas ou não haveria razão para diferenciá-las. Ademais, a liberdade de expressão está sempre referida à pessoa, ao indivíduo-cidadão. Já a liberdade da imprensa aparece como “condição” para a liberdade individual (Declaração de Virgínia) ou como uma liberdade da “sociedade” equacionada com a imprensa e/ou os meios de comunicação (Declaração de Chapultepec).
Outra forma dediferenciar as liberdades de expressão e da imprensa é verificar quais são as pré-condições materiais necessárias para que cada uma delas exista.
Enquanto a primeira nasce com o indivíduo-cidadão, a segunda, para existir, implica não só a disponibilidade de material para impressão – papel, impressora e tinta – mas, também, a capacidade dos indivíduos de ler, vale dizer, implica a existência de um público leitor.
A passagem da cultura oral para a cultura letrada e a formação, o tamanho e a história dos “públicos leitores” nas diferentes sociedades, contam boa parte da história da própria imprensa e, consequentemente, da liberdade da imprensa.
É necessário, portanto, que se leve em conta a consolidação da “imprensa” no contexto das enormes transformações que sofreram, ao longo dos últimos cinco séculos, as formas de imprimir e aquilo que é impresso; as estradas de ferro como canais de distribuição; a descoberta da eletricidade e de alguns de seus derivados, como, por exemplo, o telégrafo.
Tudo isso num longo e lento processo que começa no século XV, passando pela Revolução Industrial do século XIX, pela Revolução Digital do final do século XX e chega até os nossos dias.
Há um enorme e complexo caminho percorrido desde os volantes avulsos anônimos sem periodicidade, aos livros de notícias (booknews), panfletos e pasquins artesanais, passando às gazetas, folhas (newspapers) e periódicos pessoais – onde o redator, o cronista e o editor eram a mesma pessoa – até os jornais populares de massa e os grandes jornais e revistas de nossos dias.
Considerando as diferentes condições materiais necessárias à existência das liberdades de expressão e da imprensa, seria o contexto do nosso século XXI favorável ao exercício da liberdade de expressão? Ou melhor, seria possível considerar, como usualmente se faz, a liberdade da imprensa – a imprensa hoje existente – como extensão da liberdade de expressão individual?
Desde quando a imprensa se transforma em instituição, ou melhor, em empresa capitalista, sua relação direta com a liberdade de expressão individual deixa de existir. Ela não guarda mais relação direta com o que se pretende por liberdade da imprensa dos grandes conglomerados globais de comunicação e entretenimento, muitos deles, com orçamentos superiores àqueles da maioria dos Estados membros das Nações Unidas.
Na verdade, a transformação da imprensa em empresa que demanda cada vez mais capital, não é uma preocupação nova.
No início do século XX, no Primeiro Congresso da Associação Alemã de Sociologia, realizado em 1910, Max Weber – fundador da sociologia política – apresentou um programa de pesquisa no qual afirmava:
- Uma das características das empresas de imprensa é, hoje em dia, sobretudo, o aumento da demanda de capital. (…) Em que medida essa crescente demanda de capital significa um crescente monopólio das empresas jornalísticas existentes? (…) Esse crescente capital fixo significa também um aumento de poder que permite moldar a opinião pública arbitrariamente? Ou, pelo contrário, (…) significa uma crescente sensibilidade por parte das distintas empresas diante das flutuações da opinião pública?.
Além de se transformar em empresa e operar dentro da lógica do capital, a imprensa passou também a deter o monopólio virtual da construção, manutenção e reprodução de capital simbólico e, portanto, a funcionar dentro de outra lógica, isto é, a lógica do poder.
O famoso relatório da Comissão MacBride, publicado no início da década de 80 do século passado e hoje abandonado pela UNESCO, referia-se à dimensão política da comunicação que aumenta constantemente em função de uma “contradição fundamental (inegável)”. Dizia o relatório:
“à medida que ia se estendendo, em cada país e no mundo inteiro, o número daqueles a quem a alfabetização, a ‘conscientização’ e o desenvolvimento da independência nacional transformavam em solicitantes de informação, ou em candidatos à emissão de mensagens, uma contradição inegável, relacionada com as exigências financeiras do progresso técnico, talvez não de forma absoluta, mas pelo menos relativamente, reduzia o numero de emissores, ao mesmo tempo em que intensificava [o poder deles]” (p. 31, grifo nosso).
Entre nós, o saudoso sociólogo e jornalista Perseu Abramo, no seu conhecido livro Padrões de Manipulação na Grande Imprensa, escrito em 1988, já afirmava:
“Os órgãos de comunicação se transformaram em entidades novas, diferentes do que eram em sua origem, distintas das demais instituições sociais, mas extremamente semelhantes a um determinado tipo dessas instituições sociais, que são os partidos políticos. (…) Na realidade, esses grandes órgãos efetivamente são autônomos e independentes, em grande parte, em relação a outras formas de poder (…) porque são eles mesmos, em si, fonte original de poder, entes político-partidários, e disputam o poder maior sobre a sociedade em benefício dos seus próprios interesses e valores políticos. (…) Os órgãos de comunicação são os meios de comunicação de si mesmos como partidos [políticos].”
Na mesma linha, o também saudoso professor Octávio Ianni, analisando o “complexo e difícil palco da política”, na época da globalização, referindo-se à televisão, afirmava em 1999:
- Em lugar de O Príncipe de Maquiavel e de O Moderno Príncipe de Gramsci, assim como de outros ‘príncipes’ pensados e praticados no curso dos tempos modernos, cria-se O Príncipe Eletrônico, que simultaneamente subordina, recria, absorve ou simplesmente ultrapassa os outros.
Apesar do exposto até aqui, não é raro encontrar-se distorções e deslocamentos importantes na utilização que se faz das expressões Liberdade de Expressão e Liberdade da Imprensa, inclusive nas mais altas instâncias do nosso Poder Judiciário.
Comentando o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o renomado professor da University of Tampere [Finlândia], Kaarle Nordenstreng, firma que “o sujeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais não é uma instituição chamada a imprensa ou a mídia, mas um ser humano individual”. E prossegue: “a frase ‘liberdade de imprensa’ é enganosa na medida em que ela inclui uma ideia ilusória de que o privilégio dos direitos humanos é estendido à mídia, seus proprietários e seus gerentes, ao invés de ao povo para expressar sua voz através da mídia”. E mais à frente afirma: “nada no Artigo 19 sugere que a instituição da imprensa tem qualquer direito de propriedade sobre esta liberdade”.
A extensão de uma liberdade fundamental “à mídia, seus proprietários e seus gerentes”, no entanto, tem sido freqüente.
O Acórdão do STF [novembro de 2009] em relação ao julgamento da ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, n. 130 que considerou inconstitucional a totalidade da antiga Lei de Imprensa (Lei 5.250 de 1967), consagra interpretação oposta à do professor Nordenstreng ao estabelecer uma hierarquia entre as diferentes liberdades e deslocar o locus da liberdade do indivíduo para “a imprensa”. Diz o item n. 6 do Acórdão que trata da “Relação de Mútua Causalidade entre Liberdade de imprensa e Democracia”:
- A plena liberdade da imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloqüente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retro alimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados [grifo nosso].
É também rotineiro encontrar-se não só o deslocamento do sujeito da liberdade de expressão do indivíduo-cidadão para a “sociedade” e, desta, implicitamente, para os “jornais”, mas também a utilização das duas expressões – liberdade de expressão e liberdade da imprensa – como se equivalentes fossem.
Um exemplo pode ser constatado nas poucas linhas de anúncio de meia página que a Associação Nacional de Jornais (ANJ) fez publicar em vários jornais por ocasião de seus 30 anos (agosto de 2009). O sujeito da liberdade de expressão deixa de ser o indivíduo-cidadão e passa a ser uma difusa “sociedade”; os jornais são genericamente identificados com “os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas” e a imprensa como formadora desinteressada da opinião pública, “o que mais interessa na democracia”. Por fim, liberdade da imprensa e liberdade de expressão são explicitamente consideradas como equivalentes. O texto completo do anúncio diz:
Título: Sem liberdade de imprensa esta seria a única testemunha.
(a imagem é de um rato que assiste a uma suposta cena de corrupção sendo praticada por dois homens iluminados por faróis de automóveis).
Texto: Nos últimos 30 anos, o país passou por mudanças decisivas. E os jornais foram os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas durante o processo. Graças ao trabalho da imprensa, o cidadão teve acesso a informações preciosas que se tornaram o que mais interessa numa democracia: opinião.
Assinatura: ANJ. Há 30 anos lutando pelo que a sociedade tem de mais valioso: a liberdade de expressão.
Diante dessa realidade, são muitos e enormes os desafios que temos pela frente se pretendemos uma democracia onde prevaleçam os princípios da isonomia e da isegoria, vale dizer, onde não exista qualquer forma de censura.
O Brasil dispõe hoje de uma das mais avançadas legislações de acesso à informação do planeta, a Lei 12.527 de novembro de 2011. Temos também a imensa possibilidade potencial de construção de novas formas de sociabilidade oferecida pela internet, pendente a universalização do acesso aos computadores e a banda larga de qualidade, além da aprovação pelo Congresso Nacional do PL 2126/2011 – o marco civil da internet – cuja votação está agora prevista para depois das eleições municipais.
Apesar disso, temos que trabalhar pelo fortalecimento do campo da mídia pública – das rádios e TVs públicas e comunitárias – e pela inadiável adoção de um novo marco regulatório para a mídia.
E aqui devemos começar pelo simples cumprimento do que já determina a Constituição Federal de 1988, portanto, há mais de 23 anos.
Indico a seguir algumas conseqüências parciais e imediatas para a democracia brasileira que resultariam apenas da regulação de quatro artigos da Comunicação Social (Capítulo V do Título VIII) até hoje não regulamentados.
[Deixo de mencionar os vários incisos referentes à comunicação que estão no artigo 5º – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos.]
>> Artigo 220
O professor Fábio Konder Comparato (2011) lembrou recentemente que o Inciso II do parágrafo 3º do artigo 220 manda que lei complementar estabeleça os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Tal lei complementar não existe.
A Organização Mundial da Saúde, desde 2005, tem lançado advertências sobre os efeitos nocivos à saúde, provocados pela obesidade, sobretudo entre crianças e adolescentes. Neste sentido, a ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária baixou, em 15 de junho de 2010, a Resolução RDC n º 24 regulamentado…
- A oferta, propaganda, publicidade, informação e outras práticas correlatas, cujo objetivo seja a divulgação e a promoção comercial de alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor nutricional.
A Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (ABIA), vendo os interesses empresariais de seus membros contrariados, ingressou com ação na Justiça Federal de Brasília contra a ANVISA pedindo que não se aplicasse a eles os dispositivos da referida Resolução, de vez que só uma lei complementar poderia regular a Constituição.
Resultado: a 16ª Vara da Justiça Federal suspendeu os efeitos da Resolução em liminar posteriormente mantida pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região.
Pergunto: não interessaria, sobretudo a mães e pais de crianças, a regulação da propaganda de “alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor nutricional”?
Da mesma forma, não interessaria a regulação do parágrafo 4º do mesmo artigo 220, que se refere à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias?
O parágrafo 5º do artigo 220, por outro lado, reza que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Sua regulação teria, necessariamente, que restringir a propriedade cruzada – um mesmo grupo empresarial controlando diferentes meios (rádio, televisão, jornais, revistas, provedores e portais de internet), num mesmo mercado – como, aliás, acontece nas principais democracias contemporâneas. Ao mesmo tempo, deveria promover o ingresso de novos concessionários de rádio e televisão no mercado de comunicações.
Não interessaria ter um leque maior de alternativas para escolher a programação de entretenimento ou de jornalismo que se deseja ouvir e/ou assistir?
>> Artigo 221
Os quatro incisos do artigo 221 se referem aos princípios que devem ser atendidos pela produção e pela programação das emissoras de rádio e televisão. São eles: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; e respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Não interessaria, por exemplo, aos produtores independentes de cinema e vídeo a geração de empregos, a promoção da cultura nacional e regional e o incentivo à produção cultural, artística e jornalística regional? E a todos nós o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família?
>> Artigos 222 e 223
Dos artigos 222 e 223 – deixando de lado a questão crítica das outorgas e renovações das concessões de rádio e televisão [sobre as concessões de radiodifusão ver Lima (2011)] – talvez o benefício mais perceptível fosse a regulamentação do “princípio da complementaridade” entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão. Combinada com o parágrafo 5º do artigo 220 – “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” – essa regulamentação possibilitaria o necessário equilíbrio no mercado de rádio e televisão, hoje inexistente.
>> Artigo 224
O último dos artigos do Capítulo V cria o Conselho de Comunicação Social como órgão auxiliar do Congresso Nacional foi regulamentado pela Lei n.º 8.339 de 1991. O CCS somente foi instalado 11 anos depois, em 2002, deixou de funcionar em 2006 e foi reinstalado agora – em agosto de 2012 – sob protesto da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação Popular (FRENTECOM) e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), pela forma antidemocrática como a Mesa Diretora do Congresso Nacional procedeu na escolha de seus membros e no encaminhamento da sua eleição (Lima, 2012).
Os descaminhos do Conselho de Comunicação Social previsto no artigo 224, todavia, não deveriam impedir a criação dos Conselhos Estaduais de Comunicação Social, já previstos em pelo menos 12 constituições estaduais e na Lei Orgânica do Distrito Federal e, até hoje, instalado e funcionando apenas no estado da Bahia (Lima, 2011a).
Liberdade e liberdade de expressão são conceitos em disputa e, ao mesmo tempo, princípios a ser defendidos em nome de uma democracia republicana.
No Brasil, os adversários da isegoria têm conseguido construir – como significação dominante no espaço público – o entendimento de que estamos diante de uma batalha entre liberdade (liberdade de expressão) e censura do Estado (regulação).
O vazio provocado pela ausência de propostas concretas do governo e a impotência histórica dos (não) atores da sociedade civil fazem com que o campo de significações sobre o que constitui um Marco Regulatório para as Comunicações esteja hoje sob o controle exatamente de seus opositores mais ferrenhos.
Na verdade, trata-se de velha e conhecida tática. Escolhe-se um princípio sobre o qual existe amplo consenso e desloca-se para seu campo de significação a questão em disputa. Como em política, apoiar uma posição significa estar contra outra, é preciso identificar um adversário, no caso, os inimigos da liberdade de expressão, por extensão, aqueles que querem a censura.
Torna-se necessário, portanto, que a grande mídia convença a maioria da população de que “alguém” – que, por óbvio, não é ela – é contra a liberdade, mesmo que nossa história política, em várias ocasiões, revele exatamente o contrário. Como a grande mídia (ainda) tem o poder de construir e “enquadrar” a agenda pública, ela repete exaustivamente a “inversão” até criar um ambiente falso no qual ela – a grande mídia – apresenta a si mesma como a grande defensora da liberdade.
Nesse contexto, não basta comprovar que a mídia é regulada nas democracias mais avançadas do mundo; não basta propor que as normas e princípios constantes da Constituição de 88 sejam o “terreno comum” para se negociar a regulação; não basta mostrar que as mudanças tecnológicas exigem uma atualização da legislação; não basta reiterar compromissos com a Constituição Federal nem com a liberdade de expressão. Nada é suficiente.
Ao usar como estratégia o bordão da ameaça constante de retorno à censura e de que a liberdade de expressão está em risco, os grandes grupos de mídia transformam a liberdade de expressão num fim em si mesmo. Ademais, escamoteiam a realidade de que, no Brasil, o debate público não só [ainda] é majoritariamente pautado por ela – a grande mídia – como uma imensa maioria da população a ele não tem acesso e é dele historicamente excluída.
A interdição do debate verdadeiramente público de questões relativas à democratização das comunicações pelos grupos dominantes de mídia, na prática, funciona como uma censura disfarçada.
Essa é a situação em que nos encontramos.
De qualquer maneira, o critério fundamental para a formulação e a avaliação de qualquer política pública garantidora da liberdade de expressão e, portanto, da ausência de censura deve ser sempre se ela possibilita a superação da “cultura do silêncio”. Vale dizer, se possibilita que mais e diferentes vozes sejam ditas e ouvidas através da participação cidadã no debate público e se caminha no sentido da isegoria, princípio basilar da democracia republicana.
Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012/2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentando) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros.

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