quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A Alegria, a Dor e a Graça (iii, ii, i)

A Alegria, a Dor e a Graça (iii)
Escrito por Leonardo Coimbra


«Como, para a ciência moderna, a noção suprema de realidade é a de uma matéria que é pela divisão e pela composição ad infinitum, só o método que procede por divisão e recomposição de partes aparece como adequado; dir-se-ia que aquele factor pelo qual se constitui e se reconstitui indefinidamente a matéria é o mesmo de que a inteligência humana se serve para conhecer e dominar. A ciência antiga, como vimos, dá a matéria como o irracional na própria vida de Deus; é uma substância misteriosa que, por ser a potência de divisão infinita, constitui o elemento básico para as formas que nascem da actividade contemplativa do Espírito. Mas o conhecimento da matéria em si não atraía os antigos por saberem muito bem o que isso significava e até onde poderia conduzir.

Leonardo Coimbra, tendo dado, logo no primeiro livro, a ciência moderna como o mais alto e bem actual momento dialéctico na evolução do espírito humano procurou interpretar a evolução dela com a filosofia no sentido de que esta constituísse a boa e inteligente companheira vigilante que a trouxesse, à mínima ameaça de cousificação, para os caminhos que sobem à montanha de onde se avista todo o universo e se sente todo o seu Mistério. A ciência valeria na medida em que não se esquecesse; a filosofia estava ali ao seu lado para lhe lembrar o verdadeiro, mais alto e profundo sentido das suas descobertas.

Tal posição não se sustentou, foi-se tornando ao longo dos anos mais crítica, até que o filósofo começasse a ver que a ciência pretende outra coisa, pretende, fundamentalmente, garantir pelo pensamento a cousificação.

Poderia tê-lo visto logo de início se tivesse estado mais interessado em ver o que significava a quantificação do que seguir o pensamento na sua actividade de quantificação "progredindo por analogias"».

António Telmo («Viagem a Granada»).


«Ensinou sempre Leonardo Coimbra, mostrou sempre e escreveu sempre de modo a não sacrificar a verdade divina no humano sistema e a não encerrar a vida infinita em qualquer fóssil fórmula, por mais bela ou nobre que parecesse, por mais alta tradição que apresentasse. Muitas vezes nos advertiu, muitas vezes o comunicou em palavra e exemplo; e no seu livro sem dúvida alguma mais original, mais luminoso, mais profundo, mais rico de fecundas perspectivas A Alegria, a Dor e a Graça, advertiu como importa não apenas considerar no estudo da realidade e do homem «a fanerogâmica rútil de sol, mas também a criptogâmica das sombras»».

José Marinho («Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo»).



«Leonardo Coimbra era demasiado dotado de dons artísticos para poder pensar com serenidade dialéctica constante. A cada instante, o problema, para ele, cede lugar ao drama, o esforço discursivo - ao golpe de veemência. Daí a irregularidade de pathos da sua obra, cheia de dissonâncias ditirâmbicas e espasmos de angústia a interromperem os raciocínios mais exigentes de isenção dos impulsos sentimentais; daí, a tendência para a escalada mística da essencialidade do real, para o ataque dramático das questões. Alguns dos seus livros parecem verdadeiras incursões na selva, tal a sugestão auditiva que eles nos dão do que é característico do estado de alma do explorador no ataque e na presença das grandes espessuras vegetais: a respiração da temeridade, o grito selvático desgarrado, a sensação de perseguição, a felicidade do repouso na penumbra de uma clareira que não se sabe onde fica! Servido de uma imaginação extremamente ágil e inventiva no lançamento de intuições iluminantes a grande distância, - o seu pensamento dificilmente se resigna ao avanço gradual da reflexão, apresentando muitas vezes um ritmo ofegante que fatiga, nomeadamente nos livros em que a sua propensão para o pensamento imaginativo e fragmentário é abandonado à deriva, como sucede por exemplo nesse livro, cheio de tantas belezas e ideias, mas indefinido no conjunto, que se chama A Alegria, a Dor e a Graça. Esta complacência - deve porém dizer-se - para com o seu processo temperamental de pensar, excessivamente elíptico, granular e colorido, não é constante na sua obra de pensamento de maior valor especulativo. Leonardo Coimbra (ao contrário do que muitos cuidam, pois dum modo geral aqueles mesmo que teriam alguma competência para estudarem a sua obra, classificam-no um pouco sumariamente como um «discípulo de Bergson») embora tenha reconhecido sempre que a intuição é a fase germinativa primordial do conhecimento, e igualmente reconhecido que o pensamento aforístico, granular e colorido, é uma expressão fecunda e adequada a essa fase do conhecimento, mostrou expressamente nas suas melhores páginas que Bergson era excessivo em erigir o conhecimento intuitivo em conhecimento supremo, e em relegar o discursivo, por conceitos, como essencialmente vicioso, porque, - opina -, o conceito, longe de ser um detrito era, para si, segundo a sua expressão mesma, como uma espécie de potencial psíquico, com uma grande riqueza de intuição inerente. Por temperamento, pois, de artista, Leonardo Coimbra tendia para pensar por golpes rápidos e iluminantes, por imagens; por preferência reflexiva do pensador, reconhecia que o processo superior de conhecer é o que resulta duma explicitação gradual e aprofundante das intuições, feita por meio da velha dialéctica de análise e síntese de noções, constantemente progressiva e regressiva, depurando a sua substância e reformando a sua forma».

Sant'Anna Dionísio («Leonardo Coimbra»).


«Efectivamente, no estilo de Leonardo Coimbra não há hesitação, dificuldade ou disfarce; toda a sua expressão aparece iluminada na sua nudez plástica, e pronunciada em frases directas, ressumando sinceridade e emoção. Apenas quando Leonardo Coimbra é um lírico, por vezes interrompe o seu pensamento dando lugar a hiatos sucessivos, numa entrecortada religiosidade; mas o discurso continua sempre, torrencial e sincero, por mais profundos ou por mais elevados níveis de consciência, parecendo abandonado o tema em discussão, se bem que sempre com ele relacionado, até reaparecer noutra fórmula mais bela. O leitor atento, inteligente e benévolo não terá dificuldade em interpretar o que, parecendo resultar de incoerência e de dispersão, contém, afinal, uma séria e profunda unidade.

Na imagem: Henrique Bergson

Devemos também a Eudoro de Sousa algumas anotações sobre o uso das imagens no estilo do nosso pensador. Compara o ilustre filólogo a prosa de Leonardo Coimbra com a de Henrique Bergson e mostra que o escritor francês, para persuadir os seus leitores, recorre quase sempre a imagens mecânicas, enquanto o orador português, para entusiasmar os seus ouvintes, projecta sucessivamente imagens biológicas. O estudo de Eudoro de Sousa constitui um valioso argumento para refutar quantos falam do bergsonismo de Leonardo Coimbra.

O estilo de Leonardo Coimbra oferece dificuldades ao leitor mediano porque o pensamento do filósofo não permanece na linha horizontal, mas ora mergulha nas águas profundas do subconsciente, como que desaparecendo num hiato crepuscular, ora reaparece navegando na superfície clara da ontologia consciente, ora adeja pelos elementos superiores, de mais pura luz e de mais subtil fulgor. O leitor vulgar preferia decerto que tal discurso fosse o de um sedentário fiel aos lugares-comuns, e que tal obra fosse desenhada com esquadro e compasso, construída com materiais de resistência experimentada e arquitectada segundo um plano de intento moral e utilitário. Tal não poderia ser o estilo do pensamento dinâmico e filosófico que tanto mais se desprende das contingências morais quanto sabe que a vida do homem é uma viagem de aventura, descobrimento e regeneração.

Leonardo Coimbra, adverso por temperamento a toda e qualquer violência demonstrativa, não se propunha provar, nem agir, nem convencer, nem sequer persuadir. Sentenciando, apenas revelava o que sentia. Toda a sua expressão está, pois, marcada de sinais da sensitividade e da emoção, o que a aproxima da linguagem dos poetas.

Depois do momento admirativo de espanto, o pensador reflectia sobre a palavra e a poesia, considerando não só o poder mágico que o artista apreende, mas, ainda, a bondade religiosa que milagrosamente transmuda as almas, e sobre este problema deixou nas suas obras alguns trechos admiráveis. A quem lhe perguntava sobre a intenção dos seus discursos e dos seus livros, costumava responder que escrevia e falava pela mesma razão que os rapazitos cantam ou assobiam quando, de noite, atravessam sozinhos as florestas temerosas. Num passo célebre de A Luta pela Imortalidade, desce a justificar o carácter entimemático do seu estilo, provando assim estar consciente e senhor dos seus processos:

«O que quero é saber interrogar, não sou homem de afirmações e certezas. Já reparou o leitor que a minha gramática é muito admirativa e interrogativa?

Interrogando e admirando.

Eu era capaz de aderir a uma escola literária que só escrevesse pontos de admiração e interrogação, se não soubesse que isso poderia ser mero formalismo de quem nada admira e nada interroga»».

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).


A Graça

A graça é a sensação da liberdade. Aparece em toda a parte, onde uma força se liberte e pouse, sobre a tranquilidade da forma, o sorriso do seu excesso.

A graça é o abraço acrescentado ao corpo, a unidade plena possuindo o mundo e sobrenadando à superfície, como essas figuras dos anjos directores de Kepler, guiando os planetas pelo Espaço.

A graça repousa e perpassa, de larga túnica flutuante, no cósmico abraço dos mundos.

Aquele formidável gigante, que sustentava o Céu nos confins do mar, era heróico, retesado de esforço, nenhum sorriso brincava nos seus lábios.

O anjo de Kepler era gracioso, não combatia atritos; era o próprio planeta, elevando sobre si a unidade do seu destino cósmico.

Entre as concepções da fábula, nenhuma revela, melhor que a sereia, a divina essência da graça.

A sereia contraria a beleza pelo artificial casamento da mulher com o peixe; no entanto, uma vaga simpatia pelo elemento canto, voz subida das ondas; é a presença do excesso livre e desinteressado.

A sereia equilibra o mundo físico pelo corpo e ergue sobre esse mundo a flor da voz humana, solta e ilimitada.

A verdadeira graça não é a da sereia, mas a da própria mulher respondendo pelo corpo às comoções siderais; pela palavra e pelo canto, pondo, em cada resposta, um novo sentido de profundidade, reformando cada gesto com uma secreta intenção de amor.

Mas a nossa inércia esquece-se na harmonia plena, e, para prender a atenção, necessário é desarticular os elementos dessa harmonia.

Esta vitória não resulta, porém, da superioridade do eu sobre os outros, da irracionalidade matemática do Ser; é, pelo contrário, a justificação duma unidade de reais possibilidades, duma infinita possibilidade de formas reais, duma liberdade de ligações, de universal comunicabilidade.

O Universo é uma ordenada coexistência.

Nenhum ser se pode esconder ou furtar às actividades que o cercam. No ponto e no instante está o Espaço e está o Tempo.

No indivíduo está a Espécie e, mais além, a própria Vida, ligando-o ao planeta e aos mundos.

O episódio não existe, porque, ao acidente, que passa, assiste a essência que perdura.

A Graça, sendo o sorriso do Universo, que se possui e ama, pode revelar-se no acidente e no indivíduo, no ponto e no instante.

Na agilidade contente do movimento infantil, ou na microscópica magnificência duma diatomácea, trabalha uma força, que, sob o Oceano e o Céu, sem esforço nem diminuição, desdobra o infinito do seu poder, sobrelevando a obra.

A Graça é a sensação da liberdade, porque é, em cada forma, a presença do Infinito, que a criou e sustenta.

(...) O mundo físico é a graça do mundo mecânico, como o pensamento é a graça do mundo físico.

O arco-íris atravessando o céu é a imagem do pensamento divino envolvendo os mundos.

A Alegria é a unidade concreta dum Universo: sociedade pronta e patente; é, pode dizer-se, a realidade do Ser planificada.

A Dor é a nova direcção da Unidade, quebrada em mil destroços, fragmentada e dispersa, buscando para além.

A Graça é, antes da Dor, o sorriso da Alegria; é, depois da Dor, a Unidade reconquistada boiando sobre os destroços, que, por ela, tomam um novo sentido da Alegria, um lúcido corpo de drama, um valor de revelo e exaltação.

A Alegria atinge-se, é a nossa realidade imediata e é também a nossa conquista.

A Graça é, no indivíduo, a presença dum Infinito de qualidade, que tudo abrange e excede.

A Alegria é a vitória, em cada ser, do sentido de concreto universalismo sobre o abstracto individualismo.

A Graça é o próprio Universo que é presente, por dentro e em espírito, em cada parcela - átomo, mundo ou criatura.

A Alegria canta, a Dor procura e atende, a Graça é.

(...) A Graça é a apreensão do universal no particular, e, quando o primeiro sorriso infantil luariza uma face, é a providência amparando a fraqueza, o anjo da guarda que está vigilante.

Na imagem: São Francisco de Assis (Celebração do primeiro presépio ao vivo em Greccio).

Quem uma vez sentiu a graça, viu o próprio Deus. Vejam como ela é variável e sempre fácil em cada instante de realização.

Qual de nós, de amorosas comunicações tão estreitas, poderia, com graça, libertar um cordeiro que vai destinado à morte?

E não o fez S. Francisco de Assis?

É que, nele, a amorosa comunicação vai até ao irmão lobo, ao Sol e à Lua, e, em nós, mal chega aos mais próximos seres humanos.

O que, no humílimo santo, é a presença da amorosa unidade, seria nos outros uma inversão das ligações, uma estúpida separatividade.

É gracioso o jogo de luz que é o brincar dos peixes da água, mas também (e a que distância!) é gracioso o falar de Cristo.

Todavia é sempre um excesso; o excesso sobre a utilidade do instante, sobre todo o Tempo, todo o Espaço, todas as formas e todas as vidas.

Em nenhum caos existiria, pois, a graça, se o Universo fosse um mecanismo, uma mera necessidade, uma absoluta actualização.

A Graça é o sorriso da liberdade.

(...) Os dois escolhos da liberdade humana são a escravidão e a tirania.

A escravidão é a perda do valor pessoal, a abdicação da palavra própria, da realidade da parcela. É, no mundo humano, a direcção da pessoa por uma lei exterior; seria, no mundo físico, a exaustão completa da qualidade, a sua representação em pura quantidade, a supressão em cada massa de sua qualidade de inércia, a integral redução a puro geometrismo.

A tirania é a invasão dos outros por cada um, a direcção do interior alheio pelo inferior individual, a homogeneização do todo pelo fácies duma parcela. A tirania e a escravidão têm um mesmo processo e um fim comum - o homogéneo.

Sonhai um destino para um povo, tirando esse sonho da vossa exclusiva individualidade.

Realizado o sonho, que vai acontecer? Como nada há fora da repetição, tudo vai estagnar em actualização plena, em perpétua identidade.

Recebei passivamente uma forma, que se vos impõe; a mesma identidade estancará a vida, em perfeito automatismo.

A escravidão e a tirania são a mesma coisa, são tentativas niilistas.

O Universo existe pelo seu dramático significado social, é como um fluido enchendo e informando um vaso elástico, cuja elasticidade cansa e se demora. As pausas dessa elasticidade são a inexistência, o alvor do Nada.

Pode dizer-se que a realidade é o infinito animando o nada.

É, neste sentido, que se deve entender a criação; e, neste sentido, ela é contínua e permanente.

Se os deuses dormissem, haveria o nada.

Ora, se a grande árvore da vida recebe a seiva numa direcção, mineraliza o resto, e, pelas raízes mortas ou pelas folhas secas, ela há-de estiolar e morrer.

Esta é a explicação de todas as antinomias e contradições do pensamento humano.

A contraprova é a identidade niilista dos extremos da contradição.

(...) Em qualquer direcção que atravesseis o planeta é o Abismo, a Solidão vazia, que se vos oferece.

Se é Dia, o ruído próximo apaga a voz longínqua e nada vereis para além da Terra; se é Noite, o silêncio do planeta alonga-se sobre o abismo e um imenso, um infinito silêncio, pesa sobre a vossa alma aterrada.

Só o sentido cósmico da realidade vos poderá dar a compreensão do planeta e do abismo, rumoroso de astros. Sim; só o significado universal da existência pode fazer ouvir certas vozes, dar verbo a certas ansiedades.

(...) Trazei ao quotidiano, o eterno; à parcela, o todo; ao acidente, a essência.

A fatalidade não é mais que a queda das formas criadoras, o sono da vida, a lâmpada que quer dispensar o sol e se morre à míngua de alimento.

Se deixarmos cristalizar as formas da actividade, ficará esta enclausurada entre os cristais.

Desde a prática metafísica até à prática social de todos os dias, são os produtos da actividade os seus maiores inimigos.

Porque deixou estagnar o Tempo e o Espaço longe da ideia que lhes dá o ser, foi o pensamento humano aprisionado no ponto e no instante.

O materialismo do Tempo e do Espaço, de qualquer absolutismo que ele resulte, aniquila a liberdade, retirando o interior a todas as existências.

(...) Nunca vistes uma criança conduzindo um carrito de mão, a descer uma encosta? Ela o guia; mas, se o abandona à inércia, será imediatamente arrastada.

Assim é a civilização. Ela compõe-se dum conjunto de instrumentos da acção humana, ela é mesmo o depósito da cooperação social, a escravidão do fim aos meios materiais.

Tudo isto é, no plano prático imediato, a repetição do que aconteceu no longínquo plano metafísico.

(...) A estrutura do mundo físico é a inércia.

É, com efeito, a inércia a base da mecânica, e, se quisermos furtar-nos à mecânica, cairemos na energética, onde o conceito principal de energia é ainda definido em termos de inércia.

Ora já vimos que o significado metafísico da inércia, o seu valor realista é somente o da integral comunicabilidade, do equilíbrio social do Ser.

(...) Todo o mundo físico revela, excelentemente, o esboço duma individualização totalizante (para distinguir do falso individualismo das comunicações cortadas) nas formas cristalográficas. Os corpos tendem para uma forma própria, que as condições exteriores podem estorvar, mas sempre aparece um núcleo matematicamente exacto da forma a atingir.

É uma adaptação ao exterior actual duma forma ideal a realizar.

As leis de cristalografia são uma anunciação das leis biológicas.

É, assim, que o esforço dos que pretendem descer a vida e subir o que chamam matéria escolhe o cristal para a chave do mistério.

(...) Em cada ser vivo é presente uma unidade do seu corpo e uma unidade de vida, que o liga em todos os outros seres.

E todas as leis científicas são a procura da ideia platónica de que participa cada realidade singular.

Esta unidade, presente em todos os seres e fenómenos, não é a unidade aritmética, não é contável, nem quantificável. Ela é presente na quantidade e no número, sem ser o número ou a quantidade.

A quantidade dum círculo é a relação entre o seu espaço e o espaço do quadrado comparativo.

Nessa relação, o número soçobra perante a quantidade, até a um novo crescimento idealista.

E o que realiza o espaço circular, senão a sua participação na ideia da equidistância ao centro.

O centro é já o ponto qualificado, virtualmente contendo o próprio círculo. Aritmetizar essa unidade interior é aniquilar a própria quantidade, que tombaria em poeira de pontos sem ordem, isto é, de nada.

Esta Unidade é sempre presente desde a simples existência mecânica aos laços de gravitação, do abraço eléctrico, esboço da alma envolvendo o planeta, dando aos corpos uma polarização, até à unidade da vida criando as formas e à grande unidade moral ligando as pessoas, dando aos seres um destino comum.

Por não ser quantificável, não a esgota também nenhuma quantidade, ela é sempre um excesso sobre todos os seres e fenómenos.

Daí o duplo aspecto da Realidade: ela é contável e descritível, ela é infinita e inominada.

A Realidade é portanto um Irracional criando a razão e a ordem; Irracional porque nenhuma quantidade a pode medir, nenhuma qualidade a pode esgotar. Não quer dizer que a Realidade seja estranha à Razão, mas sim que a Razão cósmica é infinita e activa, isto é, uma sociedade, um conjunto unificado, um sistema de eficazes actividades.

(...) A primeira, a última, a constante realidade é a acção.

É, por isso, que o movimento cria os novos meios da acção, e, sobre este ponto de vista, o espaço e o tempo são criações do movimento.

(...) E é curioso observar que Aristóteles, apesar da alta consideração em que tinha o movimento, houvesse de recorrer à distinção da potência e do acto para fugir aos argumentos eleáticos, quando lhe bastava simplesmente dizer que, sendo o Espaço e o Tempo pelo movimento, não poderiam aqueles inutilizar este.

É que já tinha pecado contra a grande Unidade, deixando o Espaço degradar-se em coisa em si e só por si. Daí um recurso à primitiva unidade, na potência capaz do acto (in ob. cit., pp. 181-198).

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A Alegria, a Dor e a Graça (ii)

Escrito por Leonardo Coimbra


«O ateísmo é, filosoficamente, um caso de analfabetismo, sem que da comparação com o analfabeto resulte depreciação injusta das virtudes e das razões do ateu. Nenhum homem culto pedirá que lhe mostrem a existência de Deus pelos processos das ciências de observação e de experimentação, nem solicitará que lhe demonstrem a essência de Deus por subtilezas da razão discursiva. O homem culto ou letrado obsta a que se torne imediata e patente aos nossos olhos a divindade; o homem culto ou letrado toma o ateísmo por conclusão necessária do agnosticismo.

Aliás, entre os Portugueses, não há o costume de negar a essência ou realidade, nem a existência ou aparição, do verdadeiro Deus. Pelo contrário, o que perturba e torna perplexo o pensamento do lusíada é que a existência de Deus seja compossível com a existência do mal. O mal na consciência humana, e o mal que os homens uns aos outros transmitem, por pensamentos, palavras e obras, - eis o que causa perturbação, perplexidade e escândalo de todos quantos afirmam a existência de Deus».

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).


«A morte - dizia [Leonardo Coimbra] já num dos seus primeiros ensaios de integração deste facto irredutível - é o facto mais brutal e absurdo da Natureza: uma consciência vai seguindo na curva da sua ascensão: quando precisamente vai no ramo superior dessa curva vem a Morte e oculta essa consciência. Desaparecimento absurdo e trágico». - E no entanto Leonardo Coimbra tinha uma acentuada propensão para admitir a imortalidade como uma grande esperança; por vezes mesmo como uma realidade «evidente». Apesar disso (sempre tivemos ao menos essa impressão) era um homem que vivia no terror secreto da Morte. Esse medo era mais forte que todas as esperanças temperamentais ou dialecticamente fundamentadas do seu espírito. Debalde a sua inteligência lhe afirmava que a morte é uma aparência: intimamente, com inteira e vital sinceridade, a sua personalidade total aspirava à Vida, desejando a convivência concreta dos homens concretos, desejando e amando o ar, o sol, a terra, a casa, a mesa, a companheira, o filho. Na sua mais grossa raiz temperamental era, em suma, um homem preso a esta margem. A outra temi-a - mesmo, quando, lutando contra o espírito negativo, coloca na boca de um dos seus defensores esta justificação: «A Vida é um impulso, um esforço heróico para a consciência. Para que se não automatize e degrade esse esforço são precisas frescas e juvenis tropas de assalto. Eis a função cósmica da Morte»».

Sant'Anna Dionísio («Leonardo Coimbra»).


«Se o paganismo vibra de infantil Alegria naturalista, o cristianismo é a Alegria reconquistada, o sol depois da tempestade, a dignidade e certeza da vida, de olhos abertos e atentos na face da morte.

A Dor é o caminho da redenção.

(...) Leprosos, paralíticos, endemoninhados, bordam os caminhos de Cristo; e tantas vezes a sua palavra, toda perfume, enlevo e mimo, se interrompe para que as mãos toquem gangrenas.

Eu também acredito que Jesus veio em testemunho de Deus, e, por isso mesmo, sofreu como ninguém, sondou a Dor até àquele ponto onde ela se transfigura em imortal Alegria».

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).


A Dor

(...) Compreender o Universo, medir os mundos, assistir, repetindo-o, ao movimento que os anima e abraça, e ser o espelho de imagens jamais contempladas!

Pensai numa casa abandonada onde, há séculos, o mesmo espelho reflecte a solidão das paredes, a muda poeira do passado. É isto, no instante, a miniatura do Universo no Tempo!

O nada eterno, o zero infinito.

Tudo passa, morre e repete-se.

(...) Ir pela vida fora amorosamente enlaçados, a cantar pelos caminhos, tomando as flores para palavras, o céu e a terra para formas do nosso sentimento, da nossa fome de comunicação, e, de repente, ficarmos sós na estrada sob um céu vazio no meio duma natureza, que, emudecida, cala e nos ignora.

Outros hão-de vir?

Mas de que servem eles, se na estrada fatal ninguém permanecerá!

O planeta é a estrada do abismo; e, se pela gravidade ele sabe conservar os corpos, as almas vão desaparecendo na treva exterior, perdidas para o convívio e presença comunicativa.

O que é a consciência? Um clarão entre duas sombras? Só, então, o Universo toma consciência de si na alma do homem? Tem a terra o estranho privilégio do único foco que, por dentro, ilumina e aquece o todo?

Que solidão!

O homem passa na Terra exilado e só, ao lado dos animais e das árvores, das rochas, do mar, de todas as cegas e mudas indiferenças que o acompanham; o planeta passeia no Infinito, no meio de milhões de astros desertos, corpos de luz apagada, a miraculosa flor da consciência.

A consciência vem do nada para esse nada regressar? Se assim fosse!

Mas do nada não compreendemos o seu nascimento, e ao nada não admitimos a sua volta.

Para onde vão, pois, as almas?

Serão as consciências o trágico brinquedo dum Deus, que as acende e apaga como uma criança tonta de alegria simples? Mas pode Deus apoucar-se?

Sendo consciência, poderia ele aniquilar as consciências?

É a consciência um nada embriagado de ser?

(...) O Universo, reduzido a uma pura mecânica, seria um sistema de massas materialmente ligadas. Nada haveria de ideal neste sistema, nenhum laço de unidade o faria propriamente um Universo.

Esta realidade é a intuição subjacente a todas as metafísicas abstracções mecanicistas. É um processo curioso de suprimir o problema da consciência, que, afinal, volta a aparecer no fim como um milagre sem realidade mecânica, mas, em todo o caso, existente.

O epifenomenismo da consciência é um bastardo da mancebia do realismo ingénuo e primitivo com a monotonia dum pensamento apaixonado pelo rigoroso determinismo da mecânica.

Seria a demonstração por absurdo da existência da memória ou consciência.

(...) Se o Universo tem um foco onde se apreende e possui, ele é tão afastado da nossa realidade quotidiana que, em deslumbramento ou cegueira da sua luz, atravessamos a vida em incerta e dolorosa penumbra.

(...) O verdadeiro Deus, que da nossa cooperação aproveitasse, que ao nosso amor desse a eficiência plena do seu progressivo resgate, seria aquele, que o nosso saudoso escritor J. Sampaio (Bruno) atinge na interferência dum renovado platonismo com a brutalidade da existência do mal: Deus amante e amado, unidade de amor e aspiração, que, através das consciências, se vai elevando, subindo e resgatando.

(...) A ideia última é a do Supremo Bem; e Deus será, mais que o infinito da força, a bondade infinita, o perfeito e universal amor.

Como o mal é uma realidade, e J. Sampaio o não quer mesmo sujeitar a duvidosas interpretações, este Deus terá sofrido uma misteriosa queda, para cujo resgate em todo o Universo trabalham as consciências, em amorosa e sábia cooperação.

Mas esta misteriosa queda, feita simplesmente para síntese do mal do mundo e da bondade de Deus, não é compreensível.

O mal existe como facto, mas terá ele realidade bastante a determinar um sistema dos mundos?

Não estará o mal exactamente na escravidão com que o olhamos, na falta de interpretação capaz de o explicar?

O mal é a desarmonia, um desconcerto, onde se esperava encontrar o acordo e a ordem.

(...) A morte dos animais nem sequer tem o aspecto, que para o homem lhe dá o conhecimento.

A Natureza é indiferente ao espectáculo do seu desaparecimento, porque nada há neles de precioso em consciência ou ser individual.

A existência animal é simplesmente exemplar e a sua repetição espontânea e sem esforço.

(...) As consciências, ou almas, são plenas realidades eficientes, inatingíveis na sua pura essência espiritual pelas dores e maldade da aparência temporal.

A alma existe, o Universo tem um sentido espiritual; sob a névoa do Tempo está a substancialidade do eterno.

Então mais pungente irrompe a interrogação dolorosa: - «Para onde vão as almas?»

(...) Para o homem primitivo nunca a ausência era tão dolorosa como o tem de ser para nós.

As almas desaparecidas viviam em torno dele, na própria atmosfera que respirava. A família continuava unida, porque os mortos não fugiam.

Eles tinham mil ocasiões de intervenção nos negócios dos vivos, eram-lhes presentes a todas as horas. Companheiros de caça e de guerra, muitas vezes o seu auxílio era precioso e eficaz.

Era qualquer coisa como procurar alguém num terreno desconhecido, e receber a cada momento manifestações de certos sinais de origem desconhecida.

Hoje não há terrenos desconhecidos no planeta, e, no Universo, é tal a penetração, que o homem fez nos seus caminhos, que mal pode acreditar em ignorados recessos.

A resposta, no entanto, tem de ser igual.

Se as almas existem por si, elas irão para o nosso Espaço, animando outros corpos, para fora do nosso Espaço e para sempre desligadas dele, ou para fora, mas com possibilidades de manifestação dentro desse Espaço.

(...) Na velha Índia julgava-se que as almas percorriam um ciclo de vidas, animando sucessivamente corpos diferentes.

Esta doutrina da transmigração foi recebida pelos pitagóricos e ainda hoje tem inúmeros adeptos.

Entre os filósofos ocidentais, Schopenhauer foi profundamente influenciado pelas ideias do samsara e do nirvana.

Experiências muito recentes do coronel de Rochas ofereceram o pretexto de rejuvenescimento da doutrina. Em transe hipnótico, uma rapariga conta-lhe a vida, do presente para o passado, com uma notável continuidade, e, sem parar nos limites da sua vida individual, continua com outros personagens.

Em cada indivíduo a consciência seria um ponto central duma vasta realidade, normalmente oculta, e que, por vezes, irrompe à luz da superfície.

Não só haveria em cada consciência um prolongamento misterioso, mas a riqueza da memória não se teria perdido, permanecendo virtual e pronta, em certas condições, para uma segura actualização.

Que é assim nos limites da vida individual, é coisa averiguada e certa.

As recordações sepultadas sob um esquecimento de muitos anos erguem-se subitamente numa crise da vida, num grande perigo, numa aflição ou dor que quebre o equilíbrio da nossa adaptação.

Recordações de cuja posse nunca se tivera conhecimento brotam sem solicitação consciente.

Todos os dias ouvimos e lemos sem clara consciência mil episódios, que, às vezes, na penumbra do sono ou do despertar, nos aparecem com insistência opressiva.

É clássico o caso duma mulher falando uma língua, que nunca conscientemente aprendera.

Somos, por assim dizer, os canais duma memória ou consciência infinitamente mais rica que a parte ao longo desses canais fluindo e tendo, para nós, um brilhante corpo de realidade.

Quem não tem sentido que a vida social o vai limitando, obrigando-o a cada passo a uma escolha entre as tantas virtualidades que possui, para abandonar algumas e prosseguir desfalcado e cada vez mais pobre?

(...) É claro que, numa Natureza realista e cheia, o indivíduo só pode existir como forma parcelar do todo.

O Universo é contínuo e pleno, material como o corpo do oceano. Os indivíduos têm de ser, como as ondas, gestos do todo, formas talhadas no seu corpo, subidas de sua idêntica imensidade. Morrer é regressar ao informe, ao contínuo e absoluto homogéneo.

Os indivíduos são as vagas subindo em corpo de espuma, tombando e voltando erguidas à realidade dum novo corpo; o Nirvana é o imenso oceano calmo e silencioso.

Quem não encontrou na consciência uma realidade viva bem diferente de tudo o que o não é, ou antes, de tudo o que o não parece, há-de mais tarde ou mais cedo diluí-la no mundo, perdê-la na Unidade abstracta do Ser.

(...) Cada ser conhece imediatamente o Espaço como um ponto de impenetrabilidade que é a sua afirmação de coexistência, conhece o Tempo como o caminho da tendência, a distância entre o desejo e a acção.

Este conhecimento vago precisa-se pelo movimento, que dá ao Espaço e ao Tempo a sua mais alta organização.

Suprimi-vos e, convosco, o movimento. Que resta? A teimosia sensualista vai dizer-nos que resta a matéria em extensão. Se, no entanto, sob as palavras buscais realidades, ides ver um vazio ilimitado onde a extensão, condensando-se, se anula.

É que cada ser tem a sua melhor realidade no movimento, que o liga no Universo; e o Espaço e o Tempo mais não são que as formas elementares dessa unidade.

(...) As unidades são, portanto, essenciais na arquitectura ideal do Cosmo e tanto mais reais quanto mais e melhor representam, no ponto, o Universo, resumem, no particular, o total, que o anima. A consciência é, assim, a flor cujas raízes penetram todo o Cosmo, erguendo-o e reintegrando-o no perfume da meditação.

Eis porque um Nirvana não responde à ansiedade com que procuramos o lugar das almas.

Há uma doutrina, bem próxima das primeiras crenças populares, que coloca as almas em invisível convivência e possível comunicação com a nossa vida. É o espiritismo. Apoiado em certas experiências, só excepcionalmente com valor científico, ele pretende dar a resposta à nossa angustiosa interrogação.

Há casos em que parece que almas de mortos se manifestam por comunicações medianímicas. A sua identificação é sempre feita por processos insuficientes (1), atendendo a um possível conhecimento telepático ou criptomnésico do médium.

As suas comunicações são, porém, sempre banais e nunca superiores à pobre vida terrestre.

As notícias do além colhidas deste modo estão muito abaixo dos pensamentos, que, na vida planetária, os espíritos sérios têm produzido.

A dificuldade desta doutrina está, pois, na pequena elevação espiritual que apresenta. Entre alguns pensamentos de Epicteto ou Marco Aurélio, para não ir a Job, Isaías ou Cristo, e as melhores revelações do pretendido espiritismo, há, da parte destas últimas, uma tal inferioridade de substancialismo e viva intimidade que elas mais parecem estranhos episódios psicológicos.

(...) Ver o Universo por dentro, ter uma exultante plenitude da cósmica consciência social, eis o destino das almas, que sempre viveram para Deus e em Deus.

As consciências não se perdem, antes se alarga e aprofunda o abraço da sua compreensão. E compreender é imediatamente amar, porque é achar no todo a universal participação, a ligação completa e perfeita. Nenhuma dissolução aniquiladora, nenhuma perda da memória comunicativa, da universal existência. O tempo não é uma ilusão de formas, que tenha por oposta realidade uma eternidade adormecida. Ele é já a vitória da consciência sobre o corpo, da ligação que se conhece e estima sobre a unidade inconsciente. Será, em eternidade, a memória perfeita e absoluta, foco da realidade de onde dimanam os abraços que a unem, a conservação de tudo o que existe com universal e substancial existência.

Como Deus é a fonte e a harmonia do Mundo, é a eternidade, a origem e a sentinela do Tempo.

Abstraindo do dogmatismo teológico, que organizou esse além na intenção de uma certa justiça, de obediência e sem reciprocidade, tem valor metafísico esta doutrina das almas. Tem, desde logo, um maior mistério e transcendência.

(...) Mas, apesar de compreensível e bela, a nova realidade das almas é-nos dolorosamente estranha.

Se demoramos a visão, aparece-nos como uma esbatida paisagem selenita, a germinação das sementes sob os amortecidos olhos do luar.

Por mais que o nosso pensamento se acomode a esse mundo, é tal a fome de concreta e vigorosa presença que este é, para nós, uma incoercível ronda de fantasmas.

Há uma hora do dia em que todos somos tímidos fantasmas vagabundos. É no adeus do crepúsculo, quando a luz morre e os contornos erram.

Nas máscaras fenece a certeza fisionómica; trevas fantásticas encovam-se nas órbitas, correndo pelos rostos como fogos-fátuos de sombra.

Se fixamos um corpo, ele furta-se numa obstinação aflitiva à apreensão do olhar.

É um mundo fantástico de incerteza em que mal distinguimos a face do amigo, que nos acompanha, da recordação dos outros, que nos deixaram.

É a hora da dúvida, dos encantamentos e das bruxas. O povo tem as suas visões e ele sabe que a essa hora o Invisível abriu as suas portas.

Ar de intranquilidade e insubsistência, que, nas cidades, mal vive curtos momentos.

E, na aldeia, os vizinhos que cresceram a par connosco, aparecem com caras desconhecidas.

Um rancho, que vem do trabalho cantando, é de repente estranha multidão emudecida. Contam-se em silêncio e mal acertam. Quam sabe se irá alguém a mais?

É a hora da Iniciação no Mistério ou na Morte. Como é hesitante e fugidia! Só o povo tem olhos virgens, a pôde ver; o letrado riu-se das bruxas... (in ob. cit., pp. 116-117; 120-123; 130-133; 135-137; 142; 147-152).


(1) São muito notáveis as experiências do ilustre físico Lodge, sendo algumas altamente sugestivas da hipótese espiritual: «The Survival of Man, a Study in Unrecognised Human Faculty». Ver o nosso livro «A Luta pela Imortalidade».

Continua

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A Alegria, a Dor e a Graça (i)

Escrito por Leonardo Coimbra


«Se Deus é, se Deus superexiste, como Fonte e Origem absoluta do ser, porque há-de ser a natureza, seja a realidade universal, um todo dado e encerrado em si mesmo, finito e determinado em suas possibilidades?».

Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).


«Nunca a filosofia se poderá afastar da vida, nunca o pensamento inquieto poderá desenhar uma figura rectilínea. Na procura da verdade, o homem vai mudando de certezas durante as fases do seu viver. A alteração, a contradição das teses propostas só afligem aqueles que permanecem atentos às fórmulas transitórias. Um sistema filosófico é um desenvolvimento, uma relação de princípio, meio e fim. É a revelação de um segredo. Não se pode antecipadamente definir-lhe o carácter, tal como se pode de cada teorema calcular geometricamente os respectivos corolários.

Os livros de Leonardo Coimbra não estão construídos sobre repetições. São demasiado ricos, para poderem ser explorados ou resumidos à primeira leitura; são demasiado elípticos para consentirem a fácil utilização didáctica. São o meio oferecido a quem quiser determinar o princípio e o fim».

Álvaro Ribeiro («Leonardo Coimbra»).


«... a carne é um modo de espírito como o planeta é um modo da estrela que o gerou».

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).


A ALEGRIA

As almas verídicas (porque há aparências, esboços de almas) nutrem-se dum único alimento - o absoluto.

Procurar a substância, as relações totais das coisas, o que é, para além do que aparece, eis a ansiosa tarefa das almas.

O homem comum vive numa concha, formada dos seus hábitos, depósito dum longínquo arranjo social. Não se interroga, não pressente que, em torno dessa concha, marulha um infinito Oceano, removido de infinitas actividades e formas.

No entanto, ele mesmo acredita na absoluta solidez da sua concha, ele mesmo tem um direito e um dever. E quem deve, crê na singular excelência do seu dever.

Por maior que seja o círculo do cepticismo, alguns pontos sólidos, alguns núcleos de realidade se encontram, donde em onde, inexpugnáveis e serenos, sob o embate da dúvida.

Entre eles, elevado e rútilo, como no meio dum oceano brumoso, soberba Montanha de verdes pâmpanos e poeiras de Sol, abre em asa o Píncaro da Alegria.

Nenhuma expressão mais clara, mais viva, mais fresca, mais originária e directa que a alegria!

Tão directa que quase não é expressão!

A alegria duma manhã é a expressão das vidas que despertam, do grande abraço de luz que as enlaça e acorda?

Não será antes, muito simples e imediatamente, o espectáculo, sem cessar renovado, da Criação?

O que é a manhã?

A obra dum Fiat arrancando ao Caos um Mundo. Que imenso Escultor é esse, que aí surge a talhar o Mundo?

Olhai: não há formas, tudo se dilui em treva; cada ser, cansado de esforço de se isolar, abandona-se e adormece, desegoíza-se.

Podeis dizer que os indivíduos permanecem, porque, se acendeis a luz, eles surgirão.

E não vedes, inteligências da superfície, que a luz vos é emprestada pelo Mistério que quereis negar?!

Podeis dizer que acordais de noite e vos sentis unos e conscientes.

Como me rio das vossas mentiras!

Sois, então, unos; sois, então, indivíduos?

Pobre individualidade! Nunca andastes em procura da própria cabeça, supondo-a para os pés?!

Vamos para o Silêncio do Mar ou da Montanha, porque o ruído altera todas as relações do homem com a Verdade.

Se acordais de noite, sois bem a unidade que se conhece, corporiza e possui?

Por que é, então, que ao vosso lado sentis a presença de alguém que não fala e não respira, mas se debruça sobre vós, assiste à vossa vigília e vem regelado do frio, que a sombra entornou sobre a Terra?

E a opressão do Silêncio?!

Como vos sentis transparentes e atravessados pelos seus olhos ausentes e concretos, vizinhos, próximos, íntimos, furtando-se numa fugidia, inatingível concavidade!

Se as manhãs se comprassem, todo o oiro dos homens seria teu, ó Sublime Escultor!

Para apressar uma hora o teu Fiat, quantas fortunas acumuladas em largos séculos te seriam oferecidas!

Todas as Noites o Mundo regressa ao Caos, os indivíduos morrem (o que é o sono?), as formas apagam-se, os seres descansam do dramático esforço diurno no amoroso amplexo da Unidade Maternal.

Pela Manhã, o Escultor levanta as formas, o Pintor estende as cores, e o Milagre da Ressurreição, num permanente e eterno drama, boia à flor do Mundo no indistinto e universal sorriso da Luz.

Eis a primeira Alegria: a Alegria da Aurora. As vidas não despertam, renascem; e eis porque cada alvorada é inédita, sem par.

O Mundo sai do Caos todas as manhãs. Louvores à primeira Alegria, que é a perpétua vitória sobre a Morte, a renovada e eterna Criação.

É a alegria da cotovia e das crianças!

No primeiro sorriso luminoso caminha embalado o canto da cotovia e a babélica garrulice da humanidade infante.

A criança nada e canta na luz matutina. Olhai o pequeno bebé: todo ele é movimento para o Oriente, inconsciente, rápida e decisiva oração de carne; todo ele, como imponderável, se agita, soergue e balança na réstia de Luz, que lhe beija os cabelos; todo ele grita, se atira à luz, lança a treva da palavra, crepúsculo da alma que se avizinha.

Vindas da Unidade Maternal, as formas apenumbradas conservam-se fora dos limites nítidos e isoladores. A vibração inicial não se estendeu ainda à supefície definitiva, brinca no Espaço como se fora seu, exibindo, na agilidade graciosa do seu descuido, o poder infinito donde dimana.

Nas proximidades da Origem, é para uma criança, mais no seu espaço, mais em contacto, o Sol, que lhe auscultou a fronte, que as próprias mãos do seu corpo.

O sorriso duma criança adormecida é a espuma da Alegria flutuando sobre a sua mesma oceânica fundura.

Não vos parece, quando debruçados sobre ela, que a sua inocência sorri à parte de inocência originária que em vós, oculta e tímida, ainda subsiste?

(...) A criança é anterior ao pecado das criaturas.

Ela é a promessa infinita, o homem a exígua realização.

Aplicar à criança as medidas do homem é uma amputação criminosa.

Saudemos, nela, a Alegria originária, a mensagem do Desconhecido, a emoção de todos os seres e de todas as coisas diante do milagre da primeira palavra!

Como em torno de si o Universo é misterioso, opulento, cheio de maravilha e perpétuo encanto!

(...) A imaginação infantil é criadora, e a parte que nos Poetas criou os serafins e as ninfas era o que neles restava da faísca original.

Por isso, nas medidas dos homens, são as crianças mentirosas. Sabei-o, minhas velhas tias: as crianças nem sempre mentem. Criam, como o grande Camilo, o seu romance, o seu drama; e é, por isso, que os vossos sobrinhos, como o grande Camilo com os seus livros, vos faziam às vezes chorar sem bem saberdes porquê?

(...) Deixai mentir as crianças, as desinteressadas mentiras da sua imaginação, oh pedagogos de tantíssimos óculos, pós e sabedorias!

A mentira infantil é um jogo de cores, é a luz originária tamisando-se na névoa do mundo, é o Caos anterior mal sopitado que bate de novo à porta, é a Vida criando-se representações para desinteressadas estesias de Beleza, é a multiplicação dos sentidos, novos olhos para novas cores, mais ouvidos para a música interior dos movimentos.

(...) Mistério opulento, vitalíssimo, é o Universo para as crianças.

- Quem é o pai da Lua?...

Qual não é o poder mitogénico desta pergunta duma perdida e sempre presente criança de três anos!

Em torno das crianças, mil seres desconhecidos vivem e actuam.

E a frescura das sensações!

Por que é que, por todas as terras, se estendem certos modos de brincar?

Em toda a parte foi, e é, para as crianças, um encantador divertimento o das bolas de sabão.

(...) Qual a criança que não estremece de profundo júbilo à mais ligeira vitória sobre a gravidade?

Qual a criança, que não viu mil rebanhos e que não teve a visão védica de campinas e gados, passeando o azul nos flocos das nuvens?

Ah, a doçura, a macia carícia duma nuvem branca, banhada de Sol!

Quem, senão as crianças, tem sentidos para, sem utilitárias interpretações, sentir simplesmente o que é?

(...) A sensação corresponde a intuitos do Ser, possui um valor de realidade, que nada pode substituir.

Ela é para a criança uma revelação, que a vai destacando da névoa que a envolve. É a imensidade do firmamento, que encanta e atrai a sua alma para o longínquo azul; é o silêncio dos afastados ermos, que solicita palavras capazes de o encherem.

Esta atracção misteriosa, audaciosa e tímida, que sobre nós exerce o Espaço, é ainda um sonho infantil, um estremecimento do nosso ser íntimo, que, como a Natureza dos antigos, tem horror ao vácuo, e em tudo quer pôr o acordo da sua compreensão.

As sensações de hoje são recebidas como simples sinais, as da infância eram qualquer coisa de absoluto, soberano, vital. E, se hoje queremos evocar uma sensação, que não seja escorregadia, incoercível e fugaz, que tenha um timbre de segurança e permanência, é à nossa infância que temos de recorrer.

(...) Renovar as sensações, quer dizer, procurar a pura impressão actual, colocar a alma em face do mundo, com o possível mínimo de memória e utilitário interesse, é um dever de todo o que quer conhecer os inícios da Beleza, e até do que pretende ser leal para com a Realidade.

(...) Sim. Não é mau desmontar, de vez em quando, os nossos mecanismos de conhecer e sentir.

Quem sabe à custa de quantos inconscientes desprezos da sensibilidade eles foram construídos!

(...) Depois de um forte trabalho de sistematização filosófica ou científica, permiti-vos um passeio no campo e tentai deixar em casa as pesadas correntes de casualidade com que tudo costumais aprisionar.

(...) A concentração industrial nas cidades tem, com efeito, amplas influências, modificando até o próprio clima.

A visão citadina é fugaz, instável, em tremulina permanente.

Imaginai um edifício tombado sobre um lado, vagarosamente, com os materiais em companhia, de modo a desenhar a curva da queda. É o que poderia oferecer a novidade da sensação industrial.

Como sensação é desagradável e contraditória, não o é propriamente; antes uma confusão de sensações, que se toma por sensação precisamente pela impossibilidade de a clarificar.

Por isso a criança, que vive no campo, tem sensações mais nítidas, reais e afirmativas.

A longa preparação biológica do homem não se fez para o destino que a indústria lhe pode dar; o corpo do homem é, portanto, inadaptado a tal destino e a tais sensações.

As grandes velocidades podem mesmo perturbar o natural, o biológico significado das sensações.

(...) E a alegria do conhecimento, o júbilo das interpretações?

O que é conhecer, senão alargar a alma a ilimitados horizontes?

(...) Há qualquer coisa de terrível no conhecimento, e muita profundidade na ideia que o alia com a morte. A parcela, que representasse o todo, valia-o só por si; a criatura que compreendesse o mundo, tinha-o em si, interiorizava-o.

(...) Conhecer, penetrar o outro, quase fazê-lo o mesmo; ser na onda sonora, o estremecimento que a gera; ser, na voz do sino aldeão, frémito do bronze; na silenciosa curva do planeta, o próprio abraço, que o sustenta!

Não ser os outros e conhecê-los!

Surgir no Espaço indiferente e gritar eu, para logo voltar a voz, de mil modos diversos, a repetir eu, eu, eu!...

Oh, a sagrada maravilha do Mistério!

Conhecer, compreender e não aniquilar!

(...) Penetrar o Mistério, que sublime Alegria!

Mas sede prudentes.

O Mistério é feminino, tratai-o como Mulher.

Um fino tacto, uma comovida e enleada delicadeza e muito enternecimento vos são precisos.

O Mistério não permite violências. Se tentais violentá-lo, morre da violência.

(...) Mistério próximo e todavia inabordável se nos falta a firmeza, se, nos nossos sentidos e jeitos, é ausente a humildade atenciosa.

Brutalizai uma Mulher e sereis um Moisés Satã, invertendo o milagre de Horebe.

A água volve-se rocha; a lira, que a todos os ventos ressoava, dizendo ocultas e nunca ouvidas faltas, vai imediatamente calar-se. Nada mais será que um efeito do vosso mal, uma caricatura da vossa violência.

O Universo é na vossa frente; virginal e sedutor, tenta-vos. Conquistai-o: mas que fique sempre virgem. Só assim vos continuará a seduzir.

O Mistério é uma Mulher... (A Alegria, a Dor e a Graça, Livraria Tavares Martins, 1956, pp. 19-23; 26; 34-37; 40-45; 48-49).

Continua

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Adoração

Escrito por Leonardo Coimbra
Brevíssima explicação de António Telmo«(...) [Álvaro Ribeiro] Viu no poema Adoração de Leonardo Coimbra o Cântico dos Cânticos em língua portuguesa e exaltou-o.

O texto da Adoração é a verdade do amor em Leonardo Coimbra, não importando, pois, as investigações biográficas e bibliográficas para saber se houve ou não uma aluna sua que o trouxe apaixonado, se foi neste ou naquele período da vida do homem, se foi no Liceu ou na Universidade. O livro foi editado em 1921 pela Renascença Portuguesa, mas terá sido escrito por volta de 1914. Em 1921, como no fim da vida, era a mesma verdade do amor.

É este livro o menos considerado pelos admiradores do filósofo. Basta dizer que Sant'Anna Dionísio, essa nobre e inteligente alma de pensador, não o incluiu nos dois volumes das Obras editadas pela Lello. Álvaro Ribeiro parece ter sido, de facto, o único discípulo a prestar louvor escrito aos Cantares, nos quais vê o Cântico dos Cânticos em língua portuguesa. Contribuiu para a menorização do livro a reacção dos moralistas de esquerda e de direita, sempre apostados em dar como uma virtude a inveja que sofrem com a felicidade de outrem no amor. Homem Cristo invectivou Leonardo Coimbra no Parlamento por ter escrito e publicado um livro que desonra a família pelo louvor do adultério.

A comparação por Álvaro Ribeiro com o poema de Salomão não incide apenas no plano da literatura. Sabemos como este discípulo de Leonardo fez da reflexão e da doutrinação sobre o amor entre o homem e a mulher o tema dominante do seu pensamento. O amor é um sacramento, isto é, um mistério, não no sentido vago desta palavra, mas na sua acepção etimológica, que a torna significativa de uma relação singular e concreta com a verdade divina. O sacramento reconhece ou sagra o que já é misterioso no plano natural; revela ou faz ver em sua relação com o sobrenatural aquilo que à almas de superfície parece apenas animal. Daqui a sempre possível verdade do amor nas relações dadas socialmente por ilícitas, como se julgam serem aquelas que põem em perigo o composto familiar. Se o sacramento do matrimónio fosse apenas a legalização das relações sexuais, não faria mais do que justificar a prostituição. Seria então um factor de normalização e de banalização do que aos amantes sempre aparece como excepcional e compreende-se assim quanto é certa e certeira a observação de Orlando Vitorino de que "só no adultério há verdadeiro amor".

(...) O sentimento do excepcional, que os amantes experimentam numa relação afinal comum a todos os homens e a todas as mulheres é que é o sinal, quando não está presente, de que a união é vivida como um acto animal. Donde emerge e porque emerge tal sentimento?

Ao homem de coração e de inteligência, de que fala Leonardo Coimbra, essa sensação íntima de excepção ou de singularidade acompanha-o em todos os actos da sua vida, mas o amor não deixa indiferentes, isto é, torna diferentes todos os mortais, é mesmo a única relação, com a música, capaz de acordar nos brutos o sentimento do infinito. É uma ressonância efémera, porque logo reaparecem os interesses egoístas e inferiorizantes. Amar é também uma arte e daí o valor supremo dos livros de Álvaro Ribeiro que lhe subordina todo o ensino. Educação sexual deveria significar educação de um sexo para o outro sexo pelo estudo das disciplinas que formem no rapaz, por um lado, e na rapariga, por outro lado, distintas mas superiores consciências da enteléquia masculina e da enteléquia feminina. Tal é o sentido de livros como Escola Formal, o Liceu Aristotélico e os Estudos Gerais. A tendência actual é a de propor uma disciplina de Educação Sexual integrada no corpo neutro das restantes disciplinas com o objectivo de tornar vulgar, isto é, uma coisa como as outras, a experiência singular e misteriosa do amor. Dado como inevitável o movimento do homem e da mulher para a liberdade, os pedagogos levantam as proibições morais que, durante muitos séculos, utilizaram contra o amor, mas, ao fazerem a exaltação da uniformidade dos sexos, continuam a impedir o Milagre do Encontro (in António Telmo, A Verdade do Amor, seguido de Adoração, Cânticos de Amor de Leonardo Coimbra, Zéfiro, 2008, pp. 78-80).


A Floresta dos teus cabelosDeixa tombar os teus cabelos, amor do meu desvairo!

Revoltos, negros, torcidos como serpentes, trouxe-os Dante da sua viagem ao Inferno.

Solta os teus cabelos, oh meu Amor violento! que eles são a floresta negra dos incêndios, saques e pilhagens.

Cavalos loucos de violência e medo, salteadores com os despojos de cidades mouras: oh minha encantada moira, acorda, solta os teus cabelos de Noite e com eles açoita barbaramente o meu negro corpo de bárbaro!

Vamos incendiar o mundo, oh meu amor moreno!

Quero que o planeta sinta derreterem-se-lhe os ossos ao fogo violento dessa paixão.

Lembras-te, minha Eva de ébano, meu brilhante preto, da primeira noite em que nos encontrámos na terra, tombados, expulsos daquele longínquo céu?

Foram os teus cabelos que nos vestiram e taparam, aos nossos olhos quase ceguinhos, a saudade do Céu que se afastava.

Enlaçados descíamos o negro poço do esquecimento, tombando para a Terra, e o Céu já mal deixava ouvir suas harmonias, de nós fugindo como relâmpagos.

E ficamos sozinhos, embrulhados no manto dos teus cabelos.

Solta esses cabelos: que o vento de loucura que varre o mundo tos leve em suas asas velozes e sejam algas imensas nas ondas da ventaneira!

Vamos sobre as cidades espalhar a loucura da nossa paixão.

A nossa carne grita o ódio que nos separou e quer destruir-se numa fúria impossível. Somos dois e cada um de nós quer perder-se ou perder o outro na chama da sua paixão luxuriosa.

É como o Mar em fúria destruindo os rochedos, engolindo as terras, as naus e as gentes.

O nosso desejo é feito dum ódio misterioso: hei-de queimar-te, dissolver-te em mim, oh meu amor moreno, de cabelos selvagens flutuando ao vento da loucura!

És a bandeira inimiga, trapejante e heróica, desafiando a cobardia do amor masculino; hei-de vencer-te, ter-te como escrava no harém da minha maldade.

Aí hás-de agonizar, morrer, perdendo essa lembrança que é réstia de luz a brilhar na escuridão dos teus cabelos, se o vento os leva para a esteira dos teus olhos…

Ah! não! Meu Amor bondoso, perdoa.

Morena de terra é a tua carne, negros de Noite são os teus cabelos; mas os teus olhos, os teus olhos são sorvedouros de alma por onde tombam todas as maldades e, nas folhas mortas que os encontram, canta logo a nova primavera.

Perdoa, meu Amor; que os teus cabelos fizeram uma tempestade tamanha que em seus ninhos e covis acordaram as aves de rapina, as feras cobiçosas e fez-se um coro de uivos na Noite.

Aperta os teus cabelos, meu Amor sereno, deixa-me saber ser bom e sonhar.

Aquela Noite, a primeira noite do nosso esquecimento vamos a lembrar, oh meu amor piedoso?

Colhíamos açucenas nos jardins da alma e, de repente, fomos envolvidos duma nuvem densa, duma fantástica e tormentosa nuvem, tomou-nos um rodopio e enlaçados ficamos sempre a prender-nos, mas com ódio e violência.

Hoje, se soltas os teus cabelos negros relembro o turbilhão daquela Noite e, se os tomas e apertas, relembro, mais e mais, as açucenas do jardim das almas…

Como eram, meu amor, aquelas açucenas?

Deixa-me ver-te os olhos; eles são as crateras da alma, no fundo, muito no fundo, brilham serenos os astros daquele Jardim.

Estende agora os teus cabelos negros: olha como flutuam leves e sedosos e são carícias alongadas, que os vão enlaçar nas árvores onde a seiva acorda e canta uma remota lembrança como a nossa…

Os teus cabelos são agora cometas do Infinito lembrando as alegrias da Origem.

Oh minha Eva sem pecado! És a árvore da vida, a fonte da minha ternura, e os teus negros cabelos soltos são raios de Sol perdidos na Noite.

Os teus cabelos são a impossibilidade da tua nudez; se deixas tombar os vestidos logo eles caem a vestir-te das tintas misteriosas da Noite: são uma criação do teu pudor, os guardas invencíveis do teu Jardim, as delicadezas brandas que envolvem o suave mistério das almas.

Os teus cabelos são a cercadura do teu recato, o amaciamento que te cerca e vai no ar a distância a levar o teu vegetal aroma de acácia.

Já foste acácia e no Jardim secreto, onde vivias, eu fui o pobre jardineiro que te colhia as flores.

Tombavam-te do corpo como asas de insecto afogando-me em deliquescente perfume.

Hoje os teus cabelos são lembrança vegetal e angélica e, se os soltas, o vento que os toma é a própria saudade do Jardim das almas.

Vamos, meu Amor saudoso; que os teus cabelos flutuem ao sopro do Mistério, e, Eva sem pecado, leva-me contigo para a saudade do Céu.

Que Deus te cubra de bênçãos como de flores de acácia cobre a minha pobre alma a piedade do teu amor!

Deixa-me deitar a mão aos teus cabelos soltos, e, no carro de Osíris, atravessemos o firmamento.

Canta, meu Amor piedoso: Como o Céu se aproxima, como renasce a lembrança e vamos sendo aleluias de luz pelas Alturas!

Que a mão de Deus segure os teus cabelos e piedosamente nos leve para o seu Amor! (in ob. cit., pp. 93-97).

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O humanismo cristão

Escrito por Leonardo Coimbra

«Leonardo Coimbra afirmara-se sempre cristão; transferindo, porém, o seu conceito de cristianismo, do plano moral para o plano religioso, foi levado a admitir a divindade de Jesus, e a aceitar a teologia católica; o espírito de Leonardo Coimbra não pertencia à família dos impenitentes heterodoxos, como Pascoaes, nem à dos ocultistas lunares como Fernando Pessoa: todo ele era alvoraçada procura do sol da ortodoxia».
Álvaro Ribeiro



(...) o Absoluto não é a ideia das ideias, o bem dos bens, a verdade das verdades; mas o Deus abscôndito em presença humana, salvando os homens e, por estes, a própria matéria.

Absoluto real, absoluto verdadeiro, não primeiro acto dum processo de actualizações; mas Acto primeiro, criador de matéria e de formas, das coisas e da vida, dos mundos e das almas.

O Deus eterno do povo fiel, a despeito de traições e quedas; o absoluto, em eterno, do tempo que discorre; o inacessível, o ignoto e insondável, o Criador que envia o seu verbo aos homens e o «Verbo de fez carne e habitou entre nós».

E a história adquire, de pronto, todo o seu sentido e todo o Universo é histórico.

Antes de Cristo: o homem e o pecado, o homem e a virtude por si é inoperante para além de cada e de todas as almas.

Cristo: o homem e a graça, o homem e a natureza capazes de harmonia, readquirida inocência e acordo - a própria matéria penetrável, até à medula do seu ser - ser que foi criado, e não é, pois, pura dispersão - pelas intenções benévolas das vontades amantes.

Depois de Cristo: o homem e o seu esforço, a semente do mérito germinando em glória e eternidade no seio da Terra, no âmago do sensível e do múltiplo, transfigurando as almas e os mundos até à beatitude duma contemplação eficiente, até à harmonia das novas Terras e dos novos Céus.

O ideal é uma vida, essa vida é a verdade porque é o amor e é o amor porque é a verdade e a vida.

O Ideal nem é uma meta inacessível, nem o caminho dum esforço insuficiente; mas uma Pessoa, um coração, um amor, a própria Caridade criadora e redentora.

O ângulo da avidez humana abre-se em toda a extensão, e, em toda a extensão e altura e profundidade da sua fome de ser, pelo encontrar o infinito do ser, dando alimento a essa fome, água a toda a sede, vida em crescimento sem fim a uma avidez aquietada e sempre crescendo na alegria de se banhar, de posse, em presença viva e real da verdade, no infinito do mar do Ser, que é o mar infinito do conhecimento e do amor.

O lugar do homem é dum certo modo - o modo humilde - o centro da criação.

O coração humano é como o filtro onde a natureza se purifica para servir a vida do Espírito.

Somos semeados em corpo de morte e corrupção, ressuscitaremos em incorruptível corpo de imortalidade.

A Parúsia marca a conclusão de toda a viagem do homem e da natureza desentendidos (porque o homem se afastou de Deus), viagem de inquieta procura, na névoa, do Deus de que o homem se separou, das linhas da harmonia duma natureza obscurecida por sua pecaminosa vontade de domínio e orgulho.

O homem idealista do paganismo era uma natureza, que não poderia explicar as suas irredutíveis exigências de infinito. Traduziu-as na palavra Ideal, mas o Ideal era inacessível, insuficiente e incapaz.

A vida era um desterro do inteligível e este era o lugar metafísico duma possível contemplação filosófica e não a vida plena, a integral vida do conhecimento da vontade aquietada mas forte e querendo sempre mais, da posse perfeita, do reencontro e do Amor repousando e em crescimento sem fim.

Fons vincit sitientem, fonte maior que as sedes e, por isso mesmo, sedes aquietadas, sem febre, nem receio de perda, mas sedes crescendo sempre e permanentemente saciadas.

Cresce a sede e a água e a sede cresce porque a água é amor e amor de mais amor.

Vida de plenitude, mas plenitude viva, um pleno que se faz e refaz perenemente, porque esfera tangente a um Infinito que a envolve, e, por Amor, a contacta, solicitando-a para além.

O humanismo pagão não tinha infinito, o seu infinito era o simples sinal (de álgebra da ontologia) de carência aposto a todo o contingente. Nessa carência se movia a ansiedade humana tentando a libertação.

À consciência do nada do ser contingente respondia Platão apondo o sinal positivo, da álgebra da ontologia, ao mundo inteligível - a libertação era, então, a morte ou fuga do desterro em condições de não regressar à vida.

A Vida partida em dois hesmiférios -de luz e trevas - e o resgaste era a fuga das trevas para a luz com a negação de todo um hemisfério da Vida.

À consciência do nada podia responder-se com a renúncia, encontrando na vontade humana a luz consciente desse nada e soprando-lhe para a apagar - o budismo (1); podia responder-se com a aceitação, tudo recebendo da Vontade total da natureza, dando razão ao que é e fazendo calar as exigências do que deve ser no mais fundo da alma do homem - o estoicismo.

Um hemisfério da vida desprezado, a vida apagada num sopro, extinguindo-se na fusão nirvânica; o dever e o próprio ideal desaparecendo na ascese negativa da total aceitação.

O homem natural não pode, com efeito, subir com mais largas e abertas asas que as do platonismo e aí ficará voando para um Céu distante num desprendimento do concreto, do vivo, do real, da carne e do sangue, da Terra e do eficiente heróico amor da vida integral: de carne, sangue e alma.

A fidelidade ao sentido da Terra de Nietzsche acorda, em nós, a simpatia, porque somos da Terra também: são nossos ossos irmãos do dorso montanhoso do planeta, corre em nosso sangue a água que nele é o mar - o seu imenso coração - lançando, pelos rios, em suas veias a revitalização do seu imenso e vigoroso corpo.

E que o homem natural não existe, para o cristianismo o homem natural é um simples esquema abstracto para marcar possibilidades.

O homem foi criado em natureza para se fazer em liberdade.

A sua natureza é de ser livre, mas o ser livre é o ser que recebeu a possibilidade de se fazer livre.

Um ser livre é dum certo modo já um ser ilimitado - o que não quer dizer um ser infinito.

Um ser livre não fica no ponto de inserção de séries de fenómenos; mas, superior aos fenómenos, digamos, perpendicular à vida, pode atar e desatar as relações do plano a que é sobranceiro.

(...) Há, com efeito, no mundo contemporâneo, uma forma de humanismo que reduz o Universo a uma integral referência, subordinação e dependência do homem - o humanismo antropolátrico.

Mas este humanismo só é nítido depois do cristianismo e em consciente negação de Cristo, de Deus e do espírito, deixando o homem reduzido a uma vontade-força, a uma exclusiva vontade de domínio exaustivo e conquistador.

O humanismo idealista, de idealismo realista, não nega o espírito, e, encontrando o puro homem natural (dado em natureza, refazendo-se em liberdade) reduzido, quando não desviou para o erro e o mal a sua liberdade, ao indefinido duma acção, sempre a mesma, de relações harmoniosas no Universo, fica suspenso no vazio de uma aspiração ideal, sem termo que feche num abraço totalizante o curso dispersivo da Vida.

O puro homem natural (simples esquema abstracto) que vimos estudando é na realidade inexistente e prova a sua inexistência pelo absurdo da sua posição no real - requerendo um ilimitado que seria um ciclo de repetições, da mesma medíocre existência dum acordo, que não foi perdido e que pela simples atenção duma vontade benévola se repete e mantém indefinidamente.

O homem real não é o puro homem natural, mas sim o homem que optou e opta, o homem que usou mal a sua liberdade e que, enredando as suas relações com os seres e os mundos, as suas universais relações, vive longe de Deus e em desarmonia com o Universo.

Não é ainda o homem decaído do estado de natureza, pois já vimos que tal estado é meramente abstracto e não explicaria a fome de infinito e eterno, a transfiguração e transmutação da vida que faça esta substancial, de lábios colados a uma fonte capaz e não em permanente caminho por entre fontes insuficientes para a sede que transporta.

O homem real é o homem decaído dum estado sobrenatural, em que a natureza, dada em liberdade, pela liberdade se possui aumentando-se no amor de Deus ou diminuindo e perdendo-se em rebeldia e afastamento.

Este o significado do pecado original.

O homem autêntico, o homem da realidade é o ser de liberdade merecendo ou desmerecendo a vida deiforme, e, quando a não mereça, descendo da liberdade para a natureza até minguar e obscurecer a própria natureza no que ela teoricamente seria sem a Graça, que a põe em condições de escolher o Infinito Bem ou de Ele voluntariamente se afastar.

Eis o homem cristão.

Desterrado, sim; não do mundo inteligível para o mundo sensível, mas do mundo edénico para o mundo de prova, da dor, da angústia, do trabalho, que pode ser de perda ou de resgate.

Sim, porque essa natureza era de liberdade e liberdade sobrenatural.

Corrompeu o que seria a natureza esquemática dum possível homem de simples natureza em liberdade não sobrenatural?

Não; porque este homem jamais existiu, e o que, no homem, poderemos encontrar de correspondente a essa possível natureza é o homem incompleto do idealismo realista, onde o verdadeiro homem de Deus aparece na insatisfação de um Ideal, que ele pensa e compreende, mas que o deixa inquieto, removido duma ansiedade que aquele Ideal não pode tranquilizar: é um homem com fome e sem conhecer o Pão, com sede e sem ver a Fonte, pressentindo-a, porém, na própria angústia da sua sede.

Eis, pois, como sendo o homem um só homem - o homem de Deus - nele encontramos teoricamente dois homens - o da natureza e o da graça.

(...) O cristianismo, por isso mesmo que é o supremo transcendentalismo, é também o supremo imanentismo: as relações são as mesmas que as da natureza e da graça, do natural e do sobrenatural.

(...) A sensibilidade magnetizada pelas linhas de força da espiritualidade elevará a natureza até o homem, o homem à graça; e natureza e homem, reencontrando-se na harmonia da intenção divina, hão-de fazer em si uma amizade como a da alma com o corpo, pois que a matéria mais não é do que o verdadeiro corpo do homem purificado e livre.

Do mesmo modo e mais claramente ainda é a ciência uma promoção do homem católico.

A ciência é de origem grega e o idealismo realista dos Gregos era a prefiguração e o esforço, a orientação no bom sentido, o pressentimento no pleno de aspiração humana e no impossível dum Ideal, da Pessoa infinita, ou o desenho, em vazio aspirante, do infinito do amor, ou seja, do Deus-Caridade.

A ciência grega era contemplativa, um como querer platónico de escalada do mundo inteligível, a anamnese platónica, a visão aristotélica dos princípios e das formas.

Os problemas científicos que nos legaram os Gregos mostram claramente o jeito platónico do seu pensamento como o da quadratura do círculo, o problema de Delos, etc.

Não eram soluções que lhes interessavam, mas as soluções aristocráticas, dentro do condicionalismo das suas exigências de beleza e desinteressada contemplação. A ciência interessava essencialmente como ascese da alma, subindo ao mundo inteligível, às formas e aos princípios.

Na imagem: Pitágoras de Samos
O escândalo dos irracionais (a incomensurabilidade de certas linhas descobertas por Pitágoras), a ponto de aparecer a lenda de naufrágios em castigo de certas inconfidências, mostra bem qual a exigência de ordem, harmonia e beleza que movia os Gregos na procura da verdade.

A verdade e a sua magnífica existência coroava-se de resplendor, e esse resplendor era a beleza... Beleza, verdade e bem eram as estrelas zenitais de toda a cultura helénica.

Saber era subir da sombra à luz, da imagem ao objecto, da cópia ao modelo, das aparências aos seus arquétipos com Platão, ou era, com Aristóteles, ver nos indivíduos as formas que são o acto da sua existência, reduzir os fenómenos às causas e razões pela sua participação na luz dos princípios.

Se a física de Platão é uma promoção da matemática, seja uma anamnese do inteligível pitagórico, a de Aristóteles, pela hierarquia das potências actualizando-se até ao acto puro, é, no pensamento, uma ascensão para os princípios universais e é, no objecto, uma aspiração para o inacessível vértice da pirâmide da natureza, que é o Motor Imóvel. Pouco experimental e sem cuidado de aplicações, o desinteresse da ciência grega não é apenas abstenção superior perante o imediato, por disciplina e superação, mas é também o desdém aristocrático por esse imediato, justificado aliás pela sua implícita e explícita metafísica do radical negativismo e rebeldia da matéria.

A ciência moderna é a ciência helénica baptizada, quer dizer, iluminada por um transcendente espírito de caridade, é omnímoda, experimental, prática, confiante no indefinido das suas possibilidades e aspirando a encontrar em todo o campo da realidade inserções para o proselitismo duma vontade apostólica.

A matéria não é o mal; criada por Deus, ela será, como o resto das existências, ideia, palavra do Verbo por quem todas as coisas foram feitas.

A Idade Média é uma época de assimilação e ordenação das almas e dos povos à luz do cristianismo, época de interiorização e trabalho de desbravamento da natureza indócil e desordenada.

A interiorização em esforço contemplativo é acompanhada duma caridade contemplativa e activa: Maria e Marta, ao serviço de Cristo.

A Caridade activa é ocupada em urgências onerosas das necessidades da vida, das obras de assistência, auxílio, arranjo agrícola das terras incultas e bravias; a Caridade contemplativa é a vida mística e de oração que, acompanhando os trabalhos das artes e lavoura, é, em relação à ciência, procura e guarda dos tesouros da Antiguidade, para uma assimilação, que virá criar em potencial a vontade da ciência moderna.

A Renascença não é o encontro passivo do saber antigo, é, antes, o excitante para vontades já temperadas e tendidas para um largo exercício das novas formas da Caridade activa.

A Renascença é um movimento que num sentido é um simples ressurgir do humanismo pagão, mas, em outro sentido, é a extroversão das vontades de amor cristão, plenas de força duma meditação aumentativa elevando o ritmo da Caridade à audácia duma conquista limitada das forças e bens da natureza.

(...) É esta Renascença que irá, paradoxalmente mas com toda a glória, confluir com a Reforma para o aparecimento das correntes dum humanismo de suficiência em que o homem começa a aparecer como centro do mundo e da realidade. Estas duas correntes, juntando-se com uma veleidade do espírito científico moderno, veleidade dominada nos sábios criadores, fazendo-se querer explícito nos vulgarizadores ou cientistas, virão a dar o humanismo, que, por último, estudaremos e a que daremos o nome de humanismo antropolátrico.

Há um paganismo que não renasceu, mas sempre viveu no homem da Idade Média, pois o homem se superou, em seu realismo pleno, o idealismo realista dos Gregos, não o extinguiu e antes lhe deu o verdadeiro sentido; esse paganismo é a insuficiência do homem natural pressentida e afirmada pelos Gregos e explicada e resolvida pelo cristianismo.

É a esta Renascença, que o não é, que devemos ir buscar o sentido da ciência moderna.

E esse sentido é o que deve ser a superação da ciência grega pela Caridade activa, a contemplação helénica e seu desinteresse aristocrático, e porventura desdenhoso, feitos contemplação, no homem, da carne sangrenta e dolorosa de Cristo, nos elementos, do verbo divino obscurecido nos olhos humanos por falta de diligente e atento amor.

Na imagem: S. João EvangelistaQuer dizer: não há mais matéria rebelde e despida de toda a ideia ou faiscando fogo divino; a própria matéria terá salvação e, portanto, destino transcendente (os sacramentos, S. João, Santo Ireneu, etc.).

Não há mais fuga para o inteligível por desdém aristocrático do trabalho e da experiência no plano da sensibilidade.

Há, pelo contrário, um homem e uma natureza, essencialmente amigos e que o pecado original separou: a Caridade para os homens é também caridade para com a própria natureza.

Assim o amor da natureza, o amor católico do ser vive em S. Francisco e seus filhos, mostrando como a Idade Média preparava o bom espírito à ciência moderna: mais que preparado, tinha-o e usava-o, como um R. Bacon, por exemplo.

A natureza, obra de Deus, abre-se amplamente à curiosidade e ao amor franciscano e o platonismo dos sábios franciscanos é um platonismo baptizado, seja, um platonismo no qual a ideia não é duma classe ontológica (fidalguia?) incompatível com o sensível, mas é a sua alma, sentido e significação.

A ciência moderna é, pois, uma vontade de conquista dos segredos da natureza por amor do que eles significam (desinteresse), como é uma promoção da Caridade activa feita filantropia, para, servindo o homem, o livrar da miséria, doenças, privações e desarmonias duma natureza parecendo madrasta, mas, sendo de origem irmã e amiga, destinada ao serviço do homem, das necessidades do corpo e da alegria intelectual das almas.

A ciência moderna difere, portanto, da ciência grega na sua mais ampla curiosidade e em sua vontade de poder de acção para serviço do homem (in A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, Livraria Tavares Martins, 1962, pp. 18-25; 29 e 32-37).


(1) O budismo é mais do que isto; mas, como ontologia positiva, é, no fundo, isto e só isto.

1 comentário:

Anónimo disse...

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