quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O Poder da Frelimo (1)



Por E. Macamo
A Frelimo é tão poderosa quanto Deus. Ou melhor: tal como a omnipotência e omnipresença de Deus, o poder da Frelimo é tão grande e permeia tanto a sociedade quanto maior for a nossa crença nele. O pior nisto é que esta crença conduz a duas situações curiosas. Por um lado, ela leva muitos de nós a agirem de acordo com o que pensamos ser a vontade dessa Frelimo poderosa; alguns podem chegar ao ponto de violar normas e regras por pensarem que assim estão a respeitar a vontade dessa Frelimo todo-poderosa. Por outro lado, e igualmente mau, as pessoas que se consideram como sendo a Frelimo – em oposição, digamos, aos que são da Frelimo – também começam a acreditar que são mesmo poderosas.
Alguns estudos recentes realizados por encomenda de organizações internacionais como a Swisspeace (da Suíça), pela DFID (Grã Bretanha) e pela USAID (EUA) levantaram o espectro de uma democracia falhada em Moçambique, vítima da omnipotência e omnipresença da Frelimo. Moçambique, conclui-se algo apressadamente nesses relatórios, está a regressar ao tempo do partido único. O aparelho do Estado está nas mãos ciumentas da Frelimo; o mundo de negócios está fortemente manietado pelo chamado partido da maçaroca e batuque; e mesmo a sociedade civil está num processo de transformação em braço prolongado do partido no poder. Moçambique, vaticina-se nesses estudos, está a caminhar a passo seguro rumo à guerra.
A oposição sucumbiu às investidas da Frelimo, tendo sido vergada à vontade de ferro deste poderoso partido com sede na Pereira de Lagos. Os erros que a liderança da Renamo comete, as cisões e a sua atrapalhação geral são vistas como sendo o resultado de maquinações orquestradas pela Frelimo. Este estado de coisas constitui um mau agoiro para a saúde da democracia e da paz no País; os descontentes, diz-se com uma ponta de esperança, vão se erguer, pegar em armas e comprometer para sempre a luta contra a pobreza absoluta.
A situação objectiva do País não encoraja, na verdade, nenhum outro tipo de leitura. De facto, desde que Guebuza tomou as rédeas do partido e, depois, do Estado, a Frelimo tem sido mais agressiva na afirmação da sua identidade, na confrontação com a oposição e na definição do seu papel no Estado. Ao mesmo tempo, pelo menos a julgar pela letra e espírito das teses ao Nono Congresso bem como pela forma como esse evento decorreu, a Frelimo dá a impressão de ter redescoberto um dos seus mitos fundadores, nomeadamente a crença na ideia de que ela é o legítimo e único representante do povo moçambicano e que o que é bom para ela é bom para todo o povo moçambicano. Os sinais, de facto, não são muito bons e as fanfarras que estudos apressados vão tocando oferecem-nos uma bela oportunidade de analisarmos o que se está a passar ao nosso redor.
A independência que nos foi servida de bandeja por homens e mulheres de espírito intrépido reunidos em torno da Frelimo constitui um bem muito valioso. É responsabilidade de todo o moçambicano, mesmo daqueles que não simpatizam com a Frelimo, honrar os sacrifícios consentidos pelos seus membros pela liberdade de que hoje desfrutamos. As fraquezas humanas que uma e outra vez alguns veteranos dessa epopeia revelam não retiram o valor ao que eles fizeram, nem devem servir para lhes negar o lugar que merecem no nosso panteão histórico. Os excessos do período imediatamente a seguir à independência também não são razão suficiente para questionar o papel preponderante que a Frelimo desempenhou no nosso devir histórico. Não obstante, honrar a Frelimo e valorizar a liberdade significa também prestar atenção ao que pode colocar em perigo esses ganhos. Significa, de forma mais profunda ainda, aprender da história e dar valor à segunda liberdade que os erros e excessos do pós-independência tornaram necessária por via da instrumentalização de moçambicanos em torno da Renamo.
O último congresso deste partido, que veio na esteira de inquietações emitidas pelas agências acima citadas, tornou claro que a opinião pública moçambicana precisa de chegar a um consenso sobre o que a Frelimo é e em que consiste o seu poder. Tenho a impressão de que mais do que a opinião pública nacional, muitos membros da Frelimo precisam deste consenso. Na verdade, a simples suposição de que todos sabemos do que estamos a falar quando evocamos a Frelimo ou o seu poder tem constituído, em minha opinião, uma das razões para os receios dos que vêem o perigo da monopartidarização e, sobretudo, tem sido a fonte a partir da qual a confusão entre partido e Estado tende a não ser vista como um problema grave da evolução política recente do País. Nos artigos que se seguem vou debruçar-me sobre o “poder da Frelimo” tentando partilhar com os leitores outras formas de ler a nossa situação política sem o recurso às teorias de conspiração que são o apanágio das nossas abordagens.
Vou também abordar aspectos relacionados com o próprio partido, nomeadamente a sua filosofia, o papel dos académicos, dos técnicos e, de uma forma geral, a impressão que alguns dos seus estrategas dão do que pensam sobre a democracia, lugar da oposição e sobre o papel do seu próprio partido no contexto geral das coisas da vida. Estou a tentar fazer um exercício de reflexão crítica em resposta a um instinto animal muito mais forte do que a recomendação da modéstia intelectual de falar pouco. A esperança continua a ser de falar muito até acertar.