terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moçambique, terra queimada (xii)

Guerra de conveniência
Com a premeditada criação do ambiente para a fuga de todos os valores humanos e a instauração do terror que se alarga a todos os sectores da população, acontece que a economia moçambicana se encontra nas vizinhanças do colapso.

Estima-se que mais de duzentas mil pessoas abandonaram o país e cerca de quarenta mil se encontram nas prisões ou campos de trabalho. Se o governo moçambicano desmentir estas afirmações, desafi-o a consentir a livre entrada e circulação no país de uma comissão internacional à qual estarei pronto a fornecer os dados orientadores necessários para a verdade poder ser apurada.

Acresce que os atingidos, pela fuga ou pelo internamento, representavam o extracto mais válido nos diversos sectores produtivos.

Assim, não causa espanto que o rendimento industrial tenha caído em cerca de 70%, com total estagnação dos novos investimentos. Estas indicações podem pecar por optimismo quando se referem a um sector que era imperioso dinamizar.

Na actividade agrícola, afectada em muitas regiões por condições climáticas desfavoráveis, prevê-se que haja zonas onde no corrente ano a quebra de produtividade alcance os 75%.

Estes índices alarmantes parecem todavia mais favoráveis que a realidade quando se comparam com outros números já publicados. Assim, só na região de Manica e Sofala (distritos da Beira e do Chimoio) a produção de batata caiu de 15 000 toneladas em 1974 para 3 000 toneladas em 1975. Nos citrinos desceu-se de 270 000 caixas de laranjas para 11 000 no mesmo período. No milho, sempre na mesma base de comparação, tombou-se de 20 000 toneladas para 8 000 toneladas.

Já não se trata de ter produtos para exportar mas, apenas, de ter alimentação para as populações. A partir de Junho a fome apresenta-se como ameaça para todos. Há cidades onde o pão desapareceu há muito e onde a carne é luxo só acessível aos dignatários do partido.

O desemprego alcança nível nunca anteriormente conhecido. As aldeias começam a conhecer o afluxo dos que regressam desiludidos e esfomeados dos centros urbanos onde não conseguem encontrar ocupação.

Com a carência de pessoal qualificado, os portos e os caminhos de ferro estão reduzidos a movimentar apenas uma quarta parte da sua capacidade anterior.

As rebeliões começam a surgir em vários pontos do território, como as que em Dezembro se registaram em Lourenço Marques e forçaram Samora Machel a ocultar-se, durante dias, em parte incerta.

Como invariavelmente acontece nestas circunstâncias, a minoria dominadora tinha de inventar uma "guerra de conveniência".

Samora Machel deu o primeiro passo enviando algumas unidades para Angola, para combaterem ao lado dos "camaradas" do MPLA. Sabia quanto isso seria desagradável ao Dr. Kaunda (a quem tantos favores ficou a dever), mas tinha de cumprir as ordens soviéticas. Sobretudo, porém, procurava ver-se livre de soldados cuja atitude receava.

Mandou moçambicanos morrerem em Angola por motivos que nada tinham que ver com a causa de Moçambique, embora pudessem ser importantes para a sua segurança e interesses pessoais.

O segundo passo tinha de seguir-se com a "guerra de conveniência" contra a Rodésia.

O bloqueio que determinou não representava a punhalada mortal que quis fazer acreditar haver desferido. Como os portos e caminhos de ferro estavam já limitados à reduzida capacidade que referi (e nem tudo se dirigia à Rodésia) aconteceu que o regime de Salisbúria sofreu muito menos do que se poderia pensar. Até já tinha activado outras vias alternativas para compensar a ineficiência moçambicana.

Assim, esta outra "guerra de conveniência" converteu-se num enorme "bluff" que permitia a Samora Machel aliviar o tráfego externo, para atender às mais prementes necessidades de transporte no país e buscar ajuda internacional para cobrir os invocados prejuízos que, da aplicação das ineficazes sanções, afirmava resultarem.

Será muito duvidoso que alcance o auxílio internacional pretendido (em termos de compensar o colapso económico em que, por outras causas, se encontra) apesar da inteligente argumentação que Chissano utilizou em New York.

Uma coisa é obter votações favoráveis no Conselho de Segurança, afirmando intenções e receber mensagens de simpatia de certos governos. Outra coisa é recolher o dinheiro quando chegar a hora de fazer contas e justificar o pedido. Os governos ocidentais não têm motivo para subsidiar um satélite soviético. Os árabes não se devem inclinar em auxílios generosos a quem persegue milhões de maometanos. Do oriente veremos o que lhe enviam. Talvez que mais armas e menos pão...

(...) Reacende-se o tribalismo
Com o desaparecimento do cimento agregador que os sectores mais cultos representavam e com a destruição das estruturas administrativas voltaram as populações à condição de terem de se refugiar na vida tribal. A perseguição religiosa agrava essa tendência.

Com isso se reacende o tribalismo e dilui-se o frágil sentimento de unidade nacional que se ia erguendo.

Tendo de viver cada vez mais sobre si mesmos e recebendo cada vez menos da comunidade nacional, os povos reforçam instintivamente as suas estruturas tradicionais.

Não é compensável esse fenómeno desagregador pela eventual assistência de técnicos importados (e que por isso não dispõem de comunicabilidade) ou pela pressão dos grupos dinamizadores que parecem apostados a copiar os maus métodos da acção psico-social do regime anterior. Esses grupos, na generalidade, têm falhado rotundamente e os comícios que organizam, tiveram de passar a ser feitos em recintos fechados ou, de dia, em espaços abertos fiscalizados. Tais procedimentos resultaram, de, sem essas precauções, a assistência arrebanhada nas aldeias se escapar na sombra da noite, ou pelas portas entreabertas, ficando os doutrinadores limitados, ao cabo de algum tempo, à presença das autoridades ou dos sentados nas filas mais em evidência.
O incentivo dado ao tribalismo é, assim, consequência da acção exercida pela minoria marxista da "Frelimo", completamente desenraízada das realidades da vida rural. Essa engloba mais de sete milhões de moçambicanos que esses elitistas (como Marcelino dos Santos) são incapazes de compreender porque nunca com eles conviveram e nem sequer a alguma tribo pertencem. Já recordei que a maior parte dos intelectuais do partido nem negros são.

Enquanto que, por exemplo, o Dr. Banda e o Dr. Kaunda souberam vencer a barreira da cultura para se apoiarem no povo, por sobre as divisões tribais, acontece que Samora Machel, querendo exibir cultura assimilada bruscamente, perdeu a função agregadora nacional que poderia ter realizado. Ter-lhe-ia bastado seguir a corrente nacionalista da "Frelimo" em vez de se deixar arrastar pela minoria intelectual marxista que o deslumbra e domina.

Porque fez a opção errada já teve de afirmar publicamente que "os moçambicanos são um povo de reaccionários". Apenas com isto quer dizer que são um povo que não o segue.

É impossível governar, duravelmente, contra a vontade dos povos.

Se o tribalismo é um fenómeno contrário à construção da unidade nacional, não pode deixar de reconhecer-se que constitui arma terrível contra a opressão que se queira impor às gentes.

Já foi defesa quase indomável no período das guerras de pacificação. Volta a sê-lo quando novo colonialismo lhes bate à porta.

Na imagem: Gungunhana (o Leão de Gaza)

Os mais irredentistas (os macondes) fizeram-no sentir ao assaltarem um campo de trabalho, libertando os presos e massacrando a guarnição que não conseguiu fugir a tempo. Os pacíficos macuas (que são terríveis quando chegam ao limite da sua tradicional resignação) ocuparam povoações em que, como suprema afronta, queimaram a bandeira da "Frelimo" e hastearam a portuguesa. No território dos ajauas, não creio que Samora Machel se atrevesse a presidir a uma banja da população; são teimosos, falam pouco e não aceitam inovações que não entendam. Nas regiões nyanjas, o grau de cultura é muito elevado e por isso não podem digerir a luta de classes que Karl Marx prognosticou quando já suplantaram, tribalmente, esse problema há muito tempo. Os orgulhosos zulus mantêm a tradição aristocrática de Gungunhana que volta a reaparecer no norte, entre os seus descendentes angonis que não toleram ordens de estranhos na sua terra.

Se continuasse a citar reacções tribais, teria de escrever um outro livro, falando apenas daqueles com quem convivi intimamente durante mais de vinte anos em que gastei no mato, a aprender, tempo apaixonante da minha vida.

Apenas procurei citar exemplos para que se possa entender a gravidade e a importância do caso tribalista em Moçambique. Não cabe no esquema doutrinário de Karl Marx. É mais assimilável à dignidade da diferenciação nos árabes que Lawrence nos deixou descrita.

Samora Machel (e o elitista Marcelino dos Santos) ganhariam mais em estudar Lawrence do que em tentarem assimilar Marx.

Com os árabes há muito que aprender. Até na capacidade de luta que evidenciaram para alcançarem a vitória que se avizinha, depois de enganados e traídos pelas grandes potências que julgavam poder fazer geometria sobre terras que são a sua pátria.

Depois, têm aquele aforismo terrível que recomenda sentar-se à porta da tenda o tempo necessário para ver passar o enterro do inimigo.

Com o sangue árabe que me honro de ter nas veias não me esqueci desse conselho ditado pela sabedoria. (...)