terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moçambique, terra queimada (vii)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Jorge Jardim e a filha Carmo Jardim

(...) informação esclarecedora foi-me dada pelo Comandante Alpoim Galvão que sempre muito apreciei e com o qual mantinha contacto.

Promovido por distinção, na Guiné, e condecorado com a "Torre de Espada" o Com. Galvão não se conformava com os rotineiros métodos clássicos de conduzir a guerra e procurava outras soluções para os conflitos que enfrentávamos. Fizera sugestões concretas ao Gen. Costa Gomes, pouco antes da minha chegada a Lisboa. Foi impedido de prosseguir com o esquema e ouvira o seguinte comentário, que me reproduziu: "Deixe-se disso e limite-se a cumprir as suas ordens militares. O único agente secreto "oficial" é o Jardim. E esse já chega".

Advertindo-me quanto ao significado desta reacção de Costa Gomes, o Com. Alpoim Galvão acrescentara, no seu estilo franco e pitoresco: "Tenha todo o cuidado porque ele lhe tem um pó que se nota. Desconfia que você planeia alguma coisa, mas não o pode provar. Fará tudo para o apanhar numa curva".

De outras origens amigas eu ia recebendo avisos para que me preparasse de modo a não ser surpreendido por alguma acção directa contra mim.

Acabei por me decidir a provocar uma conversa franca com Baltazar Rebelo de Sousa, numa tarde de domingo, em sua casa na Rua São Bernardo, à Estrela.

Apesar da nossa intimidade eu tinha de respeitar as limitações que lhe resultavam do cargo que exercia no governo e por isso compreendi que evitasse concretizar os avisos amigos que me deu.

Referiu-me que havia, nas altas esferas, soma apreciável de relatórios dirigidos contra a minha suspeita actuação. Eram provenientes de várias fontes e nem eu era capaz de suspeitar de quais elas fossem. Mencionou as especulações em torno da minha ligação com o Dr. Domingos Arouca, a agitação provocada pelo conhecimento das minhas viagens a Lusaka e, até, os rumores quanto ao meu entendimento com o Dr. Almeida Santos!

As denúncias classificavam o meu nacionalismo moçambicano como próximo de ser subversivo e apoiavam-se nos meus escritos no "NB" onde defendia soluções políticas que atentavam contra a unidade nacional.

Fiquei grato pela amizade das advertências e nem ousei comentar quanto era diferente o que lhe escutava em Lisboa daquilo que havíamos conversado em Moçambique. (...)

Sondagem de opiniões
Durante a minha permanência em Lisboa visitei com a frequência habitual o Gen- Kaulza de Arriaga.

Era tido como o representante da linha mais intransigente quanto à política ultramarina, mas é interessante registar que, paralelamente, o acusavam de preconizar ampla democratização da vida portuguesa, segundo os padrões ocidentais, e que nesse terreno classificava as tímidas aberturas de Marcello Caetano no âmbito da "renovação".

Contou-me os convites que recebera e recusara para participar no elenco governativo e referiu-me, até, o atrito surgido com o susceptível primeiro-ministro a quem enviara interessante livro de análise à situação portuguesa.

Na imagem: Kaulza de Arriaga e Carmo Jardim

Kaulza defendia que a eleição do chefe de estado deveria ser feita por sufrágio universal, para lhe garantir autêntica representatividade popular e preconizava a progressiva liberalização da imprensa para nela poderem expressar as tendências políticas inegavelmente existentes. A isto e nas largas horas de conversa, na sua casa da Avenida João XXI, opunha eu o receio da infiltração comunista e o eventual domínio das estruturas por uma minoria que sabíamos ser activamente militante e duramente disciplinada. Mas ele sustentava que era preferível correr tais riscos, minimizáveis pela autoridade que as Forças Armadas podiam assegurar a essas iniciativas democratizadoras, do que enfrentarmo-nos com uma explosão incontrolada que tinha todas as probabilidades de ocorrer.

Nisso, os acontecimentos vieram a dar-lhe razão.

Sendo certo que a intervenção de Kaulza fora decisiva, em 1961, para neutralizar a tentativa militar do Gen. Botelho Moniz (em que Costa Gomes participara) não é menos verdade que nunca tinha sido um salazarista incondicional. Acompanhei de perto a sua actuação nessa altura (quanddo fui chamado de Moçambique) e até colaborei, masi tarde, na revisão do relato que escreveu e veio a ser divulgado, parcialmente, com interpretações tendenciosas.

Kaulza de Arriaga apoiou nessa altura Salazar, como tantos o fizeram, por concordância com a sua atitude perante o problema ultramarino. Havia que travar uma chacina, que havia sido desencadeada com cerca de 2.000 vítimas em menos de dez dias, e que defender o multi-racialismo contra o ódio racial. Nunca o fez por concordância com a doutrina política do Presidente do Conselho.

Pode dizer-se que o inverso quase que se passou comigo e recordo que nessa altura criticou, amigavelmente,, a minha incondicional dedicação a Salazar. Chegou mesmo a afirmar-me, quando eu me opunha às suas críticas, que a minha inteligência parecia bloqueada em tudo o que atingisse o chefe do governo...

Como político e como militar, manteve-se sempre coerente com esta posição.

Mas é curioso anotar que a minha fidelidade ao pensamento de Salazar, que mais intimamente conhecia, me permitiu evoluir com o tempo (e sobretudo com a vivência das realidades) mais afoitamente do que Kaulza, na procura de soluções realistas para o Ultramar.

O Gen. Arriaga entendia que a questão ultramarina residia mais na descentralização descolonizadora do que na efectiva autonomia política dos territórios. No fundo a sua tese avizinhava-se da que veio a ser defendida pelo Gen. Spínola, no livro "Portugal e o Futuro" de que adiante me ocuparei.

Na sua concepção geo-estratégica, que lhe ouvi desenvolver no Instituto de Altos Estudos Militares quando participei num curso que organizou, os territórios ultramarinos (descentralizados administrativamente) só lucrariam em integrar-se num grande espaço, o da Nação Portuguesa, em época dominada pelas super-dimensões económico-políticas.

Aceitando o mérito da tese eu tinha, porém, que reconhecer que isso não respondia às realidades históricas e até emocionais que se consubstanciavam na ânsia dos povos em disporem de si próprios. Nem que fosse para decidirem integrar-se, mas livremente, numa "Comunidade" supra-nacional.

Afigurava-se-lhe que a opção por mim proposta continha o risco de comprometer aquilo que chamava a "opção nacional". Se o meu esquema fosse divulgado poderia enfranquecer a decisão dos combatentes e poderia conduzir a que muitos se inclinassem para uma posição de compromisso. Tal proposta , e sobretudo vinda de mim, debilitaria a condução da guerra e a viabiilidade de serem obtidas outras soluções.

Na imagem: Linha Maginot
Argumentei que se tardássemos em seguir a "minha opção" chegaríamos ao extremo de ver tombar a possibilidade de se manter a "opção nacional" sem dispormos de linha política de onde pudéssemos salvar o essencial. Parecia-me temerário confiar na capacidade de resistência dessa "linha Maginot" que, se fosse flanqueada, nos deixaria ante uma "terceira opção" dramática: a capitulação e o abandono.

Nisso, infelizmente, fui eu a ter razão.

Ofensiva desencadeada
Entretanto passava-se a tragi-comédia que o Doutor Marcello Caetano descreve no seu "Depoimento" (páginas 189 e 204) e da qual me chegavam filtrados ecos.

Sucediam-se as notícias sobre projectos de golpes e contra-golpes, com muita fantasia misturada à realidade da insatisfação galopante dos militares. O ambiente era de tensão. Nessa altura ainda não se criara o hábito de viver em clima "golpista".

O livro do Gen. António de Spínola estava prestes a aparecer e o seu conteúdo ia sendo desvendado, em hábil jeito publicitário.

Tendo merecido uma autorização ministerial, que demonstra o grau de confiança que o governo depositava no Gen Costa Gomes, o livro teve expansão sensacional.

Tanto como o livro, esgotaram-se as tiragens do parecer de Costa Gomes que vale a pena recordar. É documento de que não se deve perder memória.

Assunto: PORTUGAL E O FUTURO

1. O livro com o título em epígrafe escrito pelo sr. Gen. António de Spínola apresenta, de uma forma elevada, a solução que julga melhor para resolver o maior problema com que a Nação se debate - a guerra no Ultramar.

2. O Gen. Spínola defende com muita lógica uma solução equilibrada que podemos situar mais ou menos a meio de duas soulções extremas: a independência pura, simples e imediata de todos os territórios ultramarinos, patrocinada pelos comunistas e socialistas, e a integração num todo homogéneo de todas aquelas parcelas, preconizada pelos extremistas da direita.

Não necessitamos desenvolver grande argumentação para concluirmos que essas soluções devem ser postas de lado, a primeira por ser lesiva dos interesses nacionais e a segunda por ser inexequível.

3. Julgo que o livro está em condições de ser publicado, acrescentando, mesmo, que o Gen. Spínola acaba de prestar desta forma, ao país, serviços que devem ser considerados tão brilhantes como os que com tanta galhardia e integridade moral prestou nos campos de batalha."


Por motivo das viagens que referi, apenas tive possibilidade de obter o livro ao regressar a Lisboa, em 28 de Fevereiro, e de conhecer cópia do parecer que o havia apadrinhado.

Li e reli atentamente aquelas 250 páginas duma prosa que tinha o inegável mérito de afirmar o que criticamente quase toda a gente dizia mas que continuava a deixar sem solução os problemas que a todos preocupavam. Efectivamente, o renascer tardio da tese do federalismo (ultrapassada pelos anseios que se haviam corporizado) corria paralelo com um confuso esquema de autodeterminação a decidir pela soma dos votos de todos os povos que se encontravam integrados na soberania portuguesa.

No "Portugal e o Futuro" escrevia-se concretamente (a páginas 108) o que a seguir reproduzo:

"Mas se por portugueses de hoje entendermos todos os que por lei são cidadãos, a sua esmagadora maioria é africana; e como tal, bem diversa terá de ser a concepção de vontade colectiva e do "facto nacional". A vontade colectiva dos vinte e cinco milhões de cidadãos nacionais é por certo diferente daquela em que pretende fundar-se um artificioso conceito de "facto nacional" e que, como tal, é afastado da discussão."

A ideia de conceber uma "vontade colectiva", expressa democraticamente pela maioria aritmética dos votos daquelas diversas gentes, arredava a possibilidade de se afirmar a "vontade autêntica" de cada um dos territórios. Os pobres guinéus ou os remotos timorenses ficariam diluídos nessa vontade abstracta e nunca mais poderiam fazer escutar a sua voz.

Construindo esse novo "facto nacional", tão artificioso como aquele que se condenava, ignorava-se a realidade já viva de distintos "factos nacionais" só polarizáveis, livremente, no conjunto da "Comunidade Lusíada". Embora fosse certo que o autor apontava para esse objectivo, deixava-se enlear em espiral de contradições que o levava a definir os contornos da "Comunidade Portuguesa", com conteúdo muito diverso e em que o Brasil caberia.

Assim, afirmava (a páginas 125):

"O Ultramar tem que ser parte integrante da Nação: e sê-lo-á, todavia, mas em quadro diferente, e é por isso que realmente valerá apena lutar".
Com tais conceitos certamente que a luta continuaria. Era impensável que as vontades locais se submetessem à vontade colectiva, por mais democrática que fosse a forma desta se afirmar. Surgiriam problemas de rebeldia ou agudizar-se-iam os já existentes, com a consequência de se agravarem as tensões com a Metrópole (desproporcionada detentora de mais de um terço da "vontade colectiva") em vez de se estreitarem os laços que era viável manter.

Ninguém, fora das fronteiras, apoiaria tal forma de autodeterminação e o estudo dos resultados parciais do sufrágio daria renovada autoridade às forças interessadas em explorar a divisão.

Correndo tudo pelo melhor, acabaríamos por regressar ao ponto de partida sem resolver o problema da guerra no Ultramar.

Mais realista era a política da "autonomia progressiva e participada" que o Doutor Marcello Caetano adoptara e não recusava a independência se esta traduzisse a vontade local, autenticamente expressa. Várias vezes, perante mim, o tinha admitido e confirma no seu livro que ao governo português nunca repugnou tal ideia.

De todo o modo, o impacto de "Portugal e o Futuro" foi tremendo. Nunca terá havido livro tão sofregamente lido em todos os quadrantes portugueses e as sínteses publicadas no estrangeiro (acentuando, sobretudo, as críticas formuladas à política ultramarina) tiveram destaque invulgar.

O movimento militar, que se corporizava, encontrou nesta obra e no prestígio pessoal do seu autor a alavanca impulsionadora de que carecia. Ao longo das suas páginas cada um descobria a frase ou argumento mais do seu agrado.

Pode compreender-se isso como atitude honesta dos menos politizados, mas o apoio de sectores solidamente doutrinados só pode ser explicado pelo propósito de erguerem o livro como estandarte de revolta e para depois o abandonarem como inútil bandeira ideológica.

Foi isso o que veio a acontecer.

Se os acontecimentos da Beira actuaram como detonador do "Movimento", o livro funcionou com carga explosiva.

Abusos de confiança
Quanto ao apadrinhamento contido no parecer do Gen. Costa Gomes, os factos passados posteriormente (na "original" descolonização portuguesa) evidenciavam a exploração premeditada e oportunista que o conduziu.

Porque inteligência lhe não falta é impossível acreditar na sinceridade com que condenava as independências dos territórios ultramarinos como lesivas dos interesses nacionais, enquanto que só arredava a tese integracionista por a entender inexequível. Até parecia, no que escreveu, que este caminho integracionista não lhe era, em si mesmo, desagradável.

Na imagem: António de Spínola, à direita
Considerava como equilibrada a solução defendida pelo Gen. Spínola que tinha de saber, pelas mesmas razões de inteligência, não oferecer a mais remota viabilidade. Tanto assim que nunca a tentou ou encorajou sempre que lhe competiu intervir no processo da descolonização.

Não vem ao caso discutir a versão oficial de que a aprovação do ministro, para a publicação de "Portugal e o Futuro" foi dada sem conhecimento do texto e louvando-se, apenas, no parecer do Gen. Costa Gomes.

O que é certo é que este nunca desmentiu essa alegação do governo, apesar de não lhe haverem faltado meios e tempo para o fazer. Parece indiscutível que aceita essa verdade que traduz a extrema confiança depositada, pelo doutor Marcello Caetano, no chefe do Estado Maior General.

E também importa reter, desde já, que o texto do livro foi levado pelo Gen. Costa Gomes na sua maleta de serviço, quando se deslocou a Moçambique em coincidência com os acontecimentos da Beira.

Tinha-o, pois, em seu poder quando começou a politização do "Movimento dos Capitães", em mais uma das coincidências que caracterizaram a sua intervenção no processo revolucionário português.

No regresso a Portugal, e como se não se desse conta do que em seu redor se passava, não perdeu tempo em apresentar o parecer tranquilizador, nos termos que anteriormente recordei.

Beneficiava, para isso, da confiança que nele depositava, também, o autor do livro.

"Portugal e o Futuro" converteu-se no instrumento de um desastre histórico. Ainda que contra os intuitos generosos de quem o escreveu, como generosas haviam sido as manipuladas motivações da população da Beira e como também foi a reacção dos militares injustamente agravados.

Povos inteiros vieram a ser sacrificados, sepultando-se nos escombros, a "vontade colectiva" de vinte e cinco milhões de pessoas.

Por coincidência, no deflagrar e na condução oportuna do processo, existe o traço comum da presença de uma pessoa: o Gen. Costa Gomes.

Coincidência que se repetiu na oportunidade do parecer, apoiado na confiança simultânea do governo e do general que escrevera o livro.

Não é de mais repeti-lo.

Porque parece estarmos perante um duplo abuso de confiança.

E que não veio a ficar por aí.

Oposição e doutrina
Estávamos em Março de 1974 e, nos primeiros dias do mês, desloquei-me ao Principado de Liechtenstein para participar numa reunião do Instituto de Estudos Políticos que regularmente se congrega em Bendern, a poucos quilómetros de Vaduz. Sempre dediquei o meu interesse a esses encontros, onde convergem personalidades europeias de reconhecido mérito, desde que ali fui introduzido pela mão amiga do Almirante Sarmento Rodrigues.

As sessões de trabalho permitem a actualização de conhecimentos informativos no âmbito de estudos conduzidos com objectividade e no mais aberto diálogo tolerante das várias tendências em presença.

Acompanhei o Prof. Adriano Moreira, a quem me prende funda amizade, e ali nos encontrámos com o Dr. Serra Brandão, economista e antigo oficial da Marinha que desempenhava altos cargos de confiança governamental nos Caminhos de Ferro de Benguela e na Companhia Mineira do Lobito.

Para além do programa do Instituto seria inevitável que conversássemos os três sobre o livro do Gen. Spínola que levara comigo e cedi aos meus companheiros para leitura.

Adriano Moreira, a quem as teorias do federalismo nunca tinham atraído, considerava inviável a solução preconizada. Por outro lado, não acreditava que o Doutor Marcello Caetano levassse a qualquer bom termo as teses da "autonomia progressiva".

Em claro antagonismo ao hesitante acompanhamento político do governo, entendia que só uma radical modificação, autenticamente liberalizadora, da cena portuguesa, poderia impedir que a comédia que em seu entender se representava, viesse a degenerar em tragédia. Citou os atropelos cometidos na Universidade, a atrofia intelectual do país e a estagnação da capacidade imaginativa que, pela selecção de medíocres, se projectava no governo.

Na imagem: Adriano Moreira
Depois de haver sido sub-secretário de Estado, Adriano Moreira tinha desenpenhado as funções de Ministro do Ultramar na fase difícil de 1961/1962. Dispondo de sólida formação e sendo dos espíritos mais vivos e inteligentes que conheci, tinha realizado actividade verdadeiramente revolucionadora com a introdução de medidas legislativas audazes e corajosa revisão de estruturas que o tempo tornara desactualizadas. Percorrera, sem medo, o norte de Angola na fase mais crítica de 1961 (acompanhado por Kaulza de Arriaga) e galvanizara civis e militares eliminando erros e oferecendo justiça.

Tinha notória incompatibilidade com Silva Cunha e podia-se dizer que era homem da oposição mais aberta ao regime do Doutor Marcello Caetano, com quem estava, pessoalmente, de relações cortadas.

Conhecia o Gen. Spínola, a quem respeitava como soldado, mas em quem não confiava como político. Estava inteirado da personalidade de Costa Gomes e, por isso, fazia dele julgamento objectivo.

Na viagem de regresso, no comboio de Sargans a Zurich, voltámos ao tema, tendo como companheiro Alfredo Sanchez-Bella, destacada e lúcida figura de político espanhol que ocupara muitos anos as funções de embaixador do seu país e fora recentemente ministro do governo de Madrid.

Adriano foi claro nas suas críticas ao regime que se mantinha em Portugal e nas soluções que preconizava. Ouvindo-o dissertar, com a lógica inteligente que o caracteriza, era clara a sua decisão às soluções democráticas de tipo ocidental com preferência aberta pelas mais modernas correntes sociais da Igreja Católica.

Avancei com o meu esquema e os meus contactos de Lusaka. Encontrei, sobretudo, incredulidade sobre as possibilidades de concretização e não me alarguei a desenvolver projectos. Percebi que para Adriano e para Serra Brandão, o caso ultramarino passava antes de mais, pela resolução do problema português centrado em Lisboa.

Sem recusar o acerto dessa apreciação, eu tinha ideias diferentes sobre outras possíveis soluções. Claro que, cada vez mais, me afastava do recomendado porpósito de manter a via da legalidade.

(...) Razões de esperança
Seriam cinco horas da madrugada quando um dos meus colaboradores me telefonou avisando do que se passava.

Sintonizei o "Rádio Clube Português" (crismado de "Emissora da Liberdade") e escutei os comunicados. A partir daí, acompanhei interessadamente, como toda a gente, o que se estava a passar.

Ainda dei uma larga volta pela cidade usando o carro da embaixada e vestindo o uniforme do motorista. Ninguém me incomodou nessas digressões, mas fiquei sem perceber ao certo como corriam as coisas, porque era impossível identificar a qual dos lados pertenciam as tropas que se deslocavam ou ocupavam os principais pontos da cidade.

Ao fim da tarde tudo parecia consumado com a rendição do Doutor Marcello Caetano ao Gen. Spínola.

Nessa altura ainda se ignorava onde estaria o Chefe de Estado e aventavam-se as mais diversas hipóteses. Chegou a constar que embarcara num navio de guerra para os Açores de onde defenderia a legitimidade constitucional que representava.

Depois, foi difundida a notícia da sua detenção, comprovando-se que esse plano de emergência não existia.

No Brasil, contou-me o Almirante Américo Thomaz que permanecera em sua casa (no Restelo) sem que alguém se preocupasse com ele ou com ele contactasse. Tudo se passou como se não houvesse de ter-se em conta a sua posição. Só já de noite o foram buscar, muito depois da rendição do Presidente do Conselho.

Tudo muito estranho para um golpe de Estado.

Se uns pecaram por ineficiência, parece que outros o terão feito por negligência.

A Junta de Salvação Nacional
Já pela madrugada dentro, a televisão apresentou a Junta de Salvação Nacional presidida pelo Gen. António de Spínola que leu a proclamação do "Movimento das Forças Armadas".

Dos membros designados pela JSN só não estava presente o Gen. Diogo Neto cuja chegada de Moçambique se aguardava.

Na imagem: Junta de Salvação Nacional

O Gen. Spínola era, fora de dúvida, patriota convicto que deixara a situação de reserva (que lhe permitia auferir atractivos vencimentos em empresas) para, voluntariamente, combater na Guiné, qualidades indispensáveis de soldado que lhe valeram os mais altos galardões. A expressão política do seu livro, que já comentei, não alterava essa imagem. Podia ser inconformista perante a indecisão governamental e confuso na argumentação de soluções. Mas era honesto nos propósitos que se propunha.

Carlos Galvão de Melo, nesse primeiro instante, apresentava-se como uma das figuras mais válidas da revolução. Tinha invulgar estatura intelectual, com coragem e capacidade técnica sempre reveladas, quer como piloto, quer como condutor de homens. Para além do valor militar, que comprovara em Angola, dispunha de preparação política, treino económico e independência de carácter. Nunca se enfeudara a ninguém e certamente que nunca o faria.

O Brig. Jaime Silvério Marques (que, de prisioneiro acidental dos insurrectos, passara a governante) era militar consciente e probo. Com passado honroso, havia sido governador de Macau evidenciando uma coragem e firmeza de atitudes que o situava acima de qualquer suspeita. Ninguém podia pôr em causa o seu patriotismo e a sua valia profissional.

Dos da Marinha, conhecia bem o Com. Rosa Coutinho com quem tivera contactos em Moçambique e que me substituíra a capitanear o "Adamastor", do Clube Naval de Lourenço Marques, na regata do Cabo ao Rio de Janeiro, no princípio de 1971. Toda a tripulação fora unânime em tecer-lhe elogios e o feito fizera-o merecer a Ordem do infante Dom Henrique de que justificadamente se orgulhava. Tivera o azar de ser aprisionado pelos congoleses, por excesso de confiança, quando realizava trabalhos hidrográficos no rio Zaire e sofrido sevícias humilhantes às mãos da soldadesca de Kinshasa e dos homens de Holden Roberto. Portara-se com estoicismo e parecia recuperado desse compreensível trauma. Não sendo uma grande figura na Marinha era, no entanto, oficial estimado, com uma carreira marcada pelo infortúnio.

Quanto ao Com. Pinheiro de Azevedo, apenas dele tinha ouvido falar como militar eficiente, disciplinador e mesmo com tendência para a dureza. Era respeitado pelos jovens oficiais de quem essas informações me tinham chegado. Também não era personalidade de destaque, parecendo incluir-se entre os menos politizados e estando, por isso, longe de ser um politizante. Caracterizava-se pelo seu notável equilíbrio e senso comum.

Assim, no conjunto, a JSN apresentava-se como constituindo equilibrado cefalismo militar (cobrindo os três ramos) que encimava uma revolução triunfante em que a Forças Armadas assumiam as responsabilidades governativas.

Ao fim e ao cabo, o pronunciamento quase se limitara a realizar a opção sugerida pelo Doutor Marcello Caetano, no último trimestre de 1973, ao próprio Gen. Costa Gomes: "Por mim, não tinha apego ao Poder e se as Forças Armadas queriam impor a sua vontade só tinham uma coisa a fazer: assumir o governo".

Foi isso, exactamente, o que fizeram e sem encontrarem resistência.

A figura de Costa Gomes, sempre abrigado pelos óculos escuros, era, no grupo da JSN, a única que se me apresentava como preocupante incógnita. Mantendo as suas conhecidas preferências ocupava lugar subalterno, detrás do Gen. Spínola de quem fora chefe apenas escassas semanas atrás. Isso poderia, no entanto, explicar-se pelo prestígio nacional que Spínola conquistara.

Mas também podia ser mais uma manobra destinada a granjear a confiança da opinião pública, em todos os sectores, anestesiando eventuais desconfianças.

Por mim, tive dúvidas desde o primeiro momento. Pouco tardaram em converter-se em certezas.

O MFA e o Ultramar

(...) Conhecendo-se, hoje,a influência que o Maj. Melo Antunes teve na elaboração daquele "Programa" [MFA] e sendo públicas as suas atitudes ulteriores (em escalada que culmina na defesa do reconhecimento do regime do "MPLA" em Angola) terá de entender-se que a sua posição de redactor ou a sua transigência às imposições que lhe chegavam, é gémea em premeditação e sinceridade, com o parecer do Gen. Costa Gomes sobre o "Portugal e o Futuro".

Efectivamente, no capítulo das "medidas a curto prazo" o "Programa do MFA" era inequívoco quando dispunha:

"A política ultramarina do Governo Provisório, tendo em atenção que a sua definição competirá à Nação, orientar-se-á pelos seguintes princípios:

a) Reconhecimento de que a solução das guerras no Ultramar é política e não militar;

b) Criação das condições para un debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino;

c) Lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz"


Tem interesse assinalar aspecto importante de que só depois me inteirei.

No texto oficial do "Programa do MFA", que veio a ser publicado no "Diário do Governo" e tenho vindo a citar, há diferença significativa em relação ao texto inicial, na parte que se refere ao Ultramar. Essa versão inicial só foi reproduzida pelo jornal "República" (então de afinidades socialistas) e no dia 26 de Abril. Presume-se que haja sido recolhido directamente dos redactores do "Programa" e antes deste vir a ser corrigido.

Nessa outra forma existia mais uma alínea que, segundo o que se lê naquele jornal, prescrevia:

c) Claro reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e adopção acelerada de medidas tendentes à autonomia administrativa e política dos territórios ultramarinos, com efectiva e larga participação das populações autóctones".

Para além da omissão desta expressiva alínea, o texto "oficial" é inteiramente idêntico.

O Maj. Sanches Osório (que foi activo revolucionário e desempenhou o cargo de Ministro da Comunicação Social, no II Governo Provisório) viria a esclarecer, mais tarde, as vicissitudes que o "Programa" atravessou até ao último momento. Tudo está descrito no seu livro "O Equívoco do 25 de Abril".

Segundo ele e confirmando o que anteriormente referi, a redacção definitiva do "Programa" fora confiada ao Maj. Melo Antunes, um dos oficiais mais politizados do "Movimento" e com fortes tendências marxistas, servidas por uma inteligência fria.

Ignora-se a quem tenha pertencido a iniciativa daquele corte do "Programa" em aspecto tão importante para a definição do método descolonizador. Mas o que revela, sem dúvida, é uma preocupação coincidente com o "original processo" de que Melo Antunes viria a ser o principal autor e de que haveria de vangloriar-se.

De qualquer forma e na altura em que foi divulgado, o "Programa do MFA" parecia ser insusceptível de interpretações dúbias quanto à política ultramarina. A esse esquema ajustava-se, sem esforço, aquilo que eu negociara em Lusaka e tudo quanto tinha publicamente afirmado no "NB".

Acreditei que tinha chegado a oportunidade de levar por diante aquele projecto e, por isso, escrevi editorial que fiz publicar no "Notícias da Beira", com o máximo destaque, no dia 3 de Maio.

Desta prosa enviei cópia, com carta atenciosa, ao Gen. António de Spínola por forma a que conhecesse o artigo antes de aparecer no jornal, mas já depois de a publicação estar determinada.

Sob o título "A nossa posição - Atitude e Programa" recordei o que naquelas colunas havia escrito, critiquei o que havia de criticável nas hesitações governativas recentes e, apelando para a unificação de todas as tendências, manifestei apoio ao "Programa do MFA" defendendo, sem as mencionar concretamente, as soluções acordadas, meses antes, sob a égide do Presidente Kaunda e do Presidente Banda.

Os jornais, conhecendo o artigo, foram levados sem demora a Blantyre, onde Pombeiro de Sousa se apressou a fazer a tradução para conhecimento do Presidente Banda. Logo depois, fê-la seguir para Lusaka.

O acolhimento, nas duas capitais africanas, foi o mais favorável possível com reafirmação do apoio para a orientação preconizada.

O Dr. Banda, numa conferência de imprensa, foi muito expressivo ao referir-se à revolução portuguesa, afirmando a esperança "de que tudo mudasse para melhor" e prevendo para breve "encorajadores desenvolvimentos em Moçambique". Assegurava que o Malawi faria tudo quanto estivesse ao seu alcance para ajudar a evolução mais favorável.

O Governador Geral necessário

Para além das afirmações programáticas do "MFA" eu tinha outras razões para ser optimista nas informações que fazia chega a Blantyre, pela via do consulado do Malawi na Beira.

Com efeito recolheramos, na "AGIM", notícias seguras de que o Gen. Silvino Silvério Marques iria ser nomeado governador-geral e comandante-chefe de Moçambique. Tratava-se de uma escolha feliz e já anteriormente mencionei o alto conceito em que tinha este militar que o Doutor Marcello Caetano tão injustamente tratou.

Certifiquei-me de ser segura a notícia recolhida pelo nosso incansável redactor-chefe, Magalhães Monteiro, e procurei estabelecer contacto com o Gen. Silvério Marques.

Finalmente, encontrámo-nos em casa de amigo comum e confirmou-me que o convite lhe havia sido formulado pelo Gen. Spínola, perante a Junta de Salvação Nacional e que até já escolhera os seus colaboradores mais directos que seguiriam (como seguiram) antes dele, para Lourenço Marques.

Revelei-lhe, então, em todo o pormenor, os resultados das minhas sucessivas deslocações à Zâmbia, mostrei-lhe os textos do "Programa de Lusaka" e não ocultei as vias de contacto que tinha com os nacionalistas moçambicanos. Nisto ocupámos a noite, até alta madrugada, ficando impressionado e surpreendido com os progressos que eu realizara. Entendia que nos encontravámos por um caminho em que muito interessava prosseguir. Afirmou a necessidade urgente de nos avistarmos, os dois, com o Presidente da JSN.

Na imagem: Gen. Silvino Silvério Marques (2.º à esq.)
Tem importância assinalar que o Gen. Silvino Silvério Marques sempre defendera a solução integracionista, publicando um trabalho notável que intitulara "Estratégia Estrutural Portuguesa". Não tínhamos, pois, a mesma atitude perante os problemas, mas unia-nos o mesmo amor à África Portuguesa e às suas gentes. O general era um multi-racialista convicto sem ser conduzido a isso, apenas pela via da sua lúcida inteligência. Adoptava tal doutrina com impressionante sinceridade de sentimentos e quase que com fervor religioso. Bem o tinha demonstrado nos tempos em que havia sido governador-geral em Angola.

Por tudo isto, nos nossos diferentes caminhos convergentes, aceitava, sem preconceitos mesquinhos, o contributo que eu lhe poderia oferecer para se alcançarem os objectivos nacionais integrados nos propósitos da autodeterminação (ob. cit., pp. 190-191; 196-205;217-220; 222-225).

Continua

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (vi)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: alvorada em Lusaka (Zâmbia)

Compromisso solene
O presidente da Zâmbia confirmou, uma vez mais, a sua capacidade de ouvir e sintetizar conclusões. Apoiou o projecto que tínhamos esquematizado em conjunto, aceitando as modificações do "papel" original. Preocupou-se, de novo, em tranquilizar-nos quanto ao carácter não marxista da "Frelimo" (sem que nós, em tal, houvéssemos insistido) e garantiu-nos a concordância dos dirigentes nacionalistas para a plataforma estabelecida.

Entre mim e Mark Chona esboçou-se o jogo delicado de atribuirmos um ao outro o mérito do que tinha programado e a consequente paternidade dos "papéis". O Dr. Kaunda interveio para decidir: "Pois bem, os papéis são meus". Com esta certidão de baptismo, concordámos em que fossem redigidos por forma a sempre se apresentarem como propostas do Governo da Zâmbia, embora na verdade traduzissem um acordo. Isso me evitaria ou atenuaria dissabores se os "papéis" fossem parar ao conhecimento de terceiros.

Neste ambiente, o Presidente Kaunda interessou-se por conhecer as perspectivas da política portuguesa face às eleições que se avizinhavam. Descrevi-lhe as dificuldades que enfrentava o Doutor Marcello Caetano situado entre as crescentes pressões provenientes da extrema-direita e da extrema-esquerda.

À margem do nosso "programa", foi este o ponto que mais prendeu a atenção do Dr. Kaunda, deixando para plano secundário o "caso de Wiryamu" em referência ao qual mencionei as investigações realizadas e a declarada firmeza governamental de punir os responsáveis. Denunciei-lhe actos condenáveis de agressão terrorista às populações, praticados, comprovadamente, por guerrilheiros da "Frelimo".

O Dr. Kaunda foi muito sensível às atrocidades que lhe descrevi e pediu-me para lhe transmitir indicação dos locais exactos, datas em que esses crimes tivessem sido cometidos e informação quanto aos presumíveis culpados.

Falámos, ainda, dos nossos comuns propósitos para se obter a "descalada" da guerra e acentuei o carácter provocador que poderia assumir a infiltração de rampas de mísseis a partir do território da Zâmbia. Sabíamos que este equipamento já começara a ser desembarcado em Dar-es-Salaam. De tudo tomaram nota, cuidadosamente e voltou a acentuar-se a mais inteira convergência de intenções.

Por último e quase ao despedirmo-nos, afirmei ao Presidente Kaunda que a partir daquele momento me consideraria ligado para sempre ao nosso acordo (que ficou baptizado como "Programa de Lusaka") que desejava resumir numa simples frase que disse em português e Pombeiro de Sousa traduziu: "Paz para todos, sem desonra para alguém". O Dr. Kaunda fez questão de anotar a frase, em português, afirmando que ela expressava fielmente as suas ideias e sentimentos.

Ao separarmo-nos disse-me, textualmente, num prolongado aperto de mão: "Agora, meu irmão, estamos comprometidos, solenemente, em levar a cabo a missão que nos propusemos. Tenho a certeza que, com a ajuda de Deus, o haveremos de conseguir. Pode sempre contar comigo, como eu contarei consigo. Tal como confiamos em si, pode confiar em que nunca o abandonaremos.

Nova e exaustiva sessão de trabalho nos estava reservada para o dia seguinte.

Esgotámos quatro horas (das 9 às 13) dando redacção final aos dois papéis. Nesta fase última, em qua a eficiência das dedicadas dactilógrafas bem foi posta à prova, interviemos: Mark Chona, Peter Kassanda, Pombeiro de Sousa e eu.

Não carecerei de adjectivar a quase euforia que nos dominava e, pelo menos, o texto tinha o mérito de ser claro, embora a forma, contendo repetições resultantes da conjugação de ideias coincidentes, não constituísse um modelo de redacção.

Nenhum de nós buscava o solenismo dos protocolos diplomáticos.

Por isso não deixámos lugar à possibilidade de interpretações ambíguas.

Tudo o que ficou escrito tinha uma só forma de ser lido.

Assim surgiu o "Programa de Lusaka" datado de 12 de Setembro de 1973.

(...) Nada tem ele que ver com o Acordo de Lusaka que ali veio veio a ser assinado, pelos obreiros da descolonização, em 7 de Setembro de 1974.

(...) Comentários ao "Programa"
A reprodução exacta e integral (...) permite analisar o conteúdo do "Programa de Lusaka" e realizar a comparação com a proposta inicial do Presidente Kaunda (...) medindo-se o alcance das alterações introduzidas. Volto a insistir, no entanto, que essas alterações não resultaram de qualquer arranjo ardiloso mas que, muito ao contrário, foram medidas palavra por palavra para traduzirem pensamento inequívoco.

Interessa, assim, salientar que o reconhecimento da posição da "Frelimo", na conjuntura moçambicana, constituía objectiva aceitação das realidades, mas não significava a entrega da autoridade política no território, sem prévia consulta popular. Por isso se escreveu no final da alínea 4. do "papel" que continha a definição dos princípios: "Os Movimentos Nacionalistas, tais como a "Frelimo", devem ser econhecidos como importante factor político cuja participação, no formular da futura estrutura política, não pode ser ignorada".

Para tornar a ideia ainda mais explicita, escrevia-se na alínea 6. do mesmo "papel": "Os dirigentes nacionalistas têm demonstrado a sua disposição para examinarem a criação de condições para a negociação da futura evolução constitucional de Moçambique" .

Este aspecto essencial veio a ser completamente abandonado no acordo de 1974, em obediência a planeada capitulação.

O nosso "Programa de Lusaka" continha, por outro lado, alguns outros pontos fundamentais que se afigura interessante e oportuno destacar:

1 - Pretendia-se desenvolver Moçambique como país estável e próspero, constituindo uma zona de paz em condições de harmonia racial e de justiça que proporcionariam à população de origem portuguesa ou a ela assimilável, melhoria de oportunidades para se integrar na nova nação.

2 - Reconhecia-se e louvava-se a política multi-racial portuguesa cujo prosseguimento se acautelava, diferenciando-a dos casos rodesianos e sul-africanos. A partir daí encarava-se a formação de ampla "Comunidade Lusíada", com a desejável participação do Brasil, na qual Portugal assumira uma posição dominante.

3 - Assegurava-se que a língua portuguesa se conservaria como "língua franca" (o que representava mais do que admiti-la como "língua oficial"), que a cultura lusíada se expandiria em dignidade e respeito, que a educação seria predominantemente de inspiração portuguesa e ministrada por professores portugueses e que as condições religiosas seriam influenciadas pela tradição portuguesa.

4 - Os interesses económicos e financeiros portugueses não só seriam preservados como beneficiariam de tratamento favorecido, como condição para qualquer acordo.

5 - No campo militar, entendia-se que a independência não poderia conduzir a que as grandes potências se aproveitassem do cessar da soberania portuguesa e que, concretamente, nenhuma potência comunista iria preencher o vazio resultante. Nesse delicado campo considerava-se indispensável que se definissem compromissos concretos.

Na imagem: zoologia africana (Tanzânia)

6 - A Zâmbia e a Tanzânia afirmavam a sua orientação não comunista e asseguravam que nunca seriam "testas de ponte" para qualquer infiltração política do comunismo. Estes países (e obviamente o Malawi) defenderiam, em qualquer emergência, as comunidades de origem portuguesa.

7 - A oportunidade para se concretizar a independência seria negociada logo que fossem acordadas as bases necessárias.

Poderá estranhar-se que as repetidas referências ao carácter não-comunista da "Frelimo", constantes do documento proposto pelo Presidente Kaunda, em Julho, tenham desaparecido do texto do "Programa de Lusaka". A iniciativa dessa supressão foi minha por entender que, se aceitavam a doutrina que no "Programa" se continha, não podiam ser comunistas, com certeza. E, não o sendo, essa dispensável redundância podia ter reflexos desagradáveis.

Embora este "Programa" fosse delineado para Moçambique (e isso porque sempre me recusei a considerar o caso de outros territórios cuja situação não conhecia com suficiente detalhe) algumas referências contidas no articulado evidenciam que os mesmos princípios deveriam ser, recomendavelmente,aplicados às demais parcelas do Ultramar. A expressão "colónias", por mim intransigentemente rejeitada, foi por completo eliminada. Essa alteração teve significado político que não pode passar despercebido.

Obviamente que o "Programa de Lusaka" não representava um acordo, para cuja aceitação nem sequer eu tinha qualidade. Traduzia, porém, uma orientação e uma agenda de trabalho para os contactos oficiais que desejávamos ver estabelecidos. Os negociadores dispunham, assim, de caminho balizado por princípios claramente definidos.

Nessa altura parecia-nos, com razoável fundamento, que se havia arquitectado a solução mais justa e equilibrada.

É provável que alguns críticos apaixonados encontrem no "Programa de Lusaka" vestígios preocupantes de neo-colonialismo ou de defesa de certos privilégios. Posso assegurar que nunca nos moveu tal intenção. Mais do que isso, porém, faço notar que essa manobra só seria possível com a conivência expressa do Presidente Kaunda (a cuja exclusiva iniciativa se ficou a dever o texto inicial sobre que o "Programa" veio a redigir-se) e que teria o apoio do Dr. Nyerere, do Dr. Banda e do próprio Samora Machel. Parece, pelo menos, um exagero considerá-los a todos, como suspeitos de albergarem tais propósitos.

Sondagens entre os militares

Pelo que respeitava às Força Armadas, as sondagens que tínhamos efectuado davam-nos a certeza de contarmos com a simpatia dos corpos de élite das unidades metropolitanas (pára-quedistas, comandos e em certa medida fuzileiros, além de considerável número de pilotos militares) sendo dubitativa a atitude dos escalões superiores. As unidades moçambicanas (designadamente, os "Grupos Especiais" e os "Grupos Especiais Pára-quedistas", respectivamente conhecidos por "GE" e "GEP"), não havia dúvida de que nos acompanhariam e o seu potencial era acrescido pelas "milícias" e pelas populações em "auto-defesa", armadas e disseminadas por todo o território.

Na imagem: Carmo Jardim

Estes homens (GE, GEP, milícias e auto-defesa) estavam mentalizados para lutarem por um Moçambique governado por moçambicanos, sem quebra de se conservarem laços com Portugal, cuja colaboração no futuro do país se entendia ser indispensável. Com eles mantinha eu estreito contacto, acompanhando-os em exercícios e operações e a minha filha Carmo tinha a seu cargo a preparação de um grupo de treino mais avançado dos "GEP", sem perder ensejo de intervir operacionalmente.

Combatiam a "Frelimo", na medida em que esta se opunha à realização daqueles objectivos ou servia de veículo à introdução de ideologias que conduziriam a novo colonialismo. Por outro lado, só o pretexto de combater a "Frelimo", dada a carência de unidades metropolitanas ou o desinteresse generalizado em muitas delas, tinha permitido erguer a poderosa força das tropas moçambicanas destinadas a manterem-se, depois da independência, como corpo militarizado que garantiria a lei e a ordem do território.

A doutrinação destas unidades havia sido encaminhada em termos adaptados à formas de ser africana, respeitando os seus valores culturais. Essa mentalização estava por tal forma consolidada que, depois do "25 de Abril", quando oficiais portugueses iniciaram o esclarecimento sobre os rumos da auto-determinação, se encontraram perante a resposta generalizada de ter sido exactamente isso o que a Carmo, e outros instrutores lhes haviam dito muito antes.

À nossa influência só escaparam, sempre, os "Flechas" (corpo militarizado da "DGS") e algumas "milícias" distritais como as que dependiam do famoso comandante Roxo.

Em contrapartida, dispunhamos de sólidos contactos com os "comandos" formados em Montepuez, na sua quase totalidade de recrutamento moçambicano, que constituíam verdadeira formação de élite dotada de alto grau de eficiência militar.

Não seria, pois, pelo lado das tropas que o "Programa" correria risco de difícil concretização.

Análise do xadrez político
No xadrez político também o panorama tinha de ser analisado. Desde a competição presidencial, em que interviera o Gen. Humberto Delgado, tornava-se cada vez mais nítido que as forças democráticas tendiam a ser dominadas, em Moçambique, pelas correntes extremistas que de "democratas" só conservavam o nome. A linha comunista (ou, para ser mais exacto, a linha marxista-soviética) apoiada no activismo de umas dezenas de militantes, defendia, em consonância com dirigentes exilados ou actuando em Portugal, a teoria do abandono e da entrega dos territórios ultramarinos aos movimentos emancipalistas mais da sua simpatia.

Recordo as apreensões que, já em 1959, a esse respeito me transmitira o Dr. Marcial Ermitão que se dera conta da infiltração marxista nas forças oposicionistas, durante a campanha eleitoral. O Dr. Ermitão havia estabelecido banca de advogado na Beira depois de haver sido deportado para Moçambique, no seguimento da falhada revolução na Guiné. Fora oficial do Exército com brilhante folha de serviços e altas condecorações. Era genuíno republicano e democrata, em firme e coerente oposição ao regime do Doutor Salazar.

Em torno dele e do grupo dos "históricos" (como Cardiga, Dr. Palhinha, Dr. Neves Anacleto, Carvalho e Dr. William Pot) tinha-se reunido grupo mais jovem com alguns idealistas (como Francisco Barreto, Dr. Alberto Moreira, Nunes de Carvalho e Nogueira Pereira) e com outros que cedo denunciaram os seus propósitos pouco democráticos. Estes activistas quase que haviam assaltado o comando da campanha oposicionista causando graves apreensões ao honesto Dr. Ermitão.

De resto, o fenómeno não era exclusivo de Moçambique e alargava-se a todo o território nacional.

Esta orientação que se desenhava (e tentei combater) veio a ser comprovada à sociedade demonstrando-se, depois do "25 de Abril", o acerto das minhas denúncias. Veremos, adiante, como isso se processou e a estratégia que seguiram.

O pior é que esta actuação extremista se confundia com os anseios dos verdadeiros nacionalistas moçambicanos, existentes no interior do país e até acabava por os confundir na via pela qual expressavam os seus anseios.

Ao mesmo tempo, essa agitação política motivava reacções da extrema oposta que encontrava argumentos para combater tudo o que tivesse vislumbres de separatismo e sem medir as diferenças profundas que existiam entre o "abandono", preconizado pelos "democratas", e a "evolução para a independência" defendida pelos nacionalistas.

A confusão era habilmente conduzida pelos marxistas e ingenuamente combatida pelos opositores.

Entre os dois extremos, tínhamos de tomar a posição de combater o abandono enquanto condenávamos o integracionismo. Por isso, na campanha eleitoral de 1973, optei por defender consistentemente as teses do Presidente do Conselho em favor da "autonomia progressiva e participada", com todos os meios que tinha ao meu alcance.

Aí, fui apanhado, muitas vezes, no turbilhão das emoções e no calor das discordâncias. Não tinha alternativa e esforcei-me por salvaguardar o que era essencial à marcha de Moçambique para o futuro.

Nesse confronto eleitoral, de Outubro de 1973, a expressão mais conflitiva situou-se, na Metrópole, em torno do problema ultramarino. Em Moçambique, isso foi mais limitado por a actividade oposicionista ter sido arredada, por expediente administrativo e verdade seja que sem reacção muito viva por parte dos excluídos. Limitaram-se a protestos formais, em papel selado, acontecendo mesmo que o principal signatário de um deles me referiu, pessoalmente, o carácter profissional com que se limitara a intervir e a falta de convicção sobre as teses expendidas. Tratava-se do Dr. António de Almeida Santos. (...)

Tudo começou na Beira
Em Janeiro de 1974, precipitavam-se, em Moçambique, acontecimentos que vieram a ter, na vida nacional, impacto que era dificilmente previsível.

Certas acções de guerrilha afectaram o distrito de Vila Pery causando a morte de colonos europeus e a destruição de propriedades. Desencadearam-se reacções descontroladas ou habilmente exploradas por parte da população branca e que atingiram o paroxismo quando uma família foi brutalmente atacada na zona de Vila Manica, próximo da fronteira com a Rodésia.

Estava eu no Malawi quando isso sucedeu e ao deslocar-me a Tete fui ali informado de que havia eclodido, na Beira e em Vila Pery, um movimento de protesto contra a actuação militar e que essas demonstrações tendiam a alastrar a outros pontos do território.

Compreendi, desde logo, que se estava em face de manobra destinada a confrontar a população civil e as Forças Armadas, afectando o que restava de confiança mútua e destruindo a solidariedade que era indispensável manter na "frente interna". Se tudo se esboroasse, abrindo fendas difíceis de colmatar, a "Frelimo" encontraria campo propício ao seu progresso e não precisaria de discutir soluções, depois de conquistado o terreno e dominadas as vontades.

Por isso andei numa roda viva de Tete para Nampula, para Vila Pery e por último para a Beira.

Consegui serenar os ânimos, evitar arremetidas de desespero, impor alguma disciplina e detectar agitadores que me foi possível neutralizar.

Mas não me foi possível impedir o que havia já acontecido e conduzira, na Beira, a manifestações exaltadas que remataram com o ataque de populares à Messe dos oficiais, no Macuti, a par de insultos incríveis.

Tudo extremamente grave e prejudicial para os altos interesses em jogo.

Para além disso, os acontecimentos prejudicavam seriamente os meus propósitos.

Importa deixar registado que a agitação teve o seu princípio num apelo da Associação Comercial da Beira para que os estabelecimentos encerrassem as portas em sinal de luto pelo assassinato cometido nos arredores de Vila Manica e consequente protesto contra a inoperância das forças militares. Com a paralização das empresas, foram lançadas para a rua milhares de pessoas, em estado de excitação emocional, criando-se as condições para serem manipuladas pelos agitadores.

O que é notável e por isso o sublinho desde já, é que o método voltou a ser repetido (e de novo com êxito) em Lourenço Marques, apenas alguns meses volvidos. Adiante o recordarei.

A Associação Comercial, que havia sido assaltada pela influência liderante dos "democratas", fora habilmente motivada por homens como Malaquias de Lemos, Afonso dos Santos, Manuel Rezende e Armindo de Brito.

Na maior parte eram "Frelimistas" convictos (como vieram a revelar-se ou declarar-se) que aproveitavam um acto de guerra da "Frelimo" (cujas características nunca vieram a ser exactamente esclarecidas) para levantarem as populações europeias em manobra cujos intuitos transparecem hoje nítidos: provocar a afronta aos militares e levarem estes à reacção de desforço inevitável que se integrava no planeamento estabelecido.

O movimento desencadeado tinha, para mais, cunho vincadamente racista que lhe emprestava tonalidades antipáticas. Poucos dias antes tinha-se registado horrível massacre dos habitantes africanos de um aldeamento, em Tete, sem que uma só palavra de repulsa se ouvisse.

Nessa altura, surgia na Beira o Gen. Costa Gomes que se instalou em casa de uma sua irmã e com aparato de protecção pessoal realmente notável.

Na imagem: o Ministro do Ultramar, Silva Cunha, em Tete (Moçambique)

O dispositivo de escuta de que dispunhamos nos correios, graças a cumplicidades dedicadas, veio a informar-me que em resposta a sugestão do Ministro da Defesa (Prof. Silva Cunha), feita de Lisboa, o general referia a impossibilidade de se deslocar a Vila Manica, "por não existirem condições de segurança". Isto, apesar de contar com meios de que mais ninguém dispunha e de escoltas com que os colonos nem sequer podiam sonhar.

O mais notável, porém, foi ver surgir os mesmos farisaicos promotores das manifestações beirenses como lídimos representantes da população e serem recebidos por Costa Gomes, a quem entregaram exposição dirigida ao governo e que o chefe do Estado Maior General lhes prometeu que seria devidamente considerada. Nesse documento (que se afirmava expressar o sentir da opinião pública, mas foi elaborado, no mais absolito segredo, no escritório de Afonso dos Santos) atacava-se o comportamento dos militares, preconizava-se a solução política do problema moçambicano, pretendia-se a aberta discussão das soluções e sugeria-se uma ampla consulta popular.

Foi este o primeiro contacto, evidente, de Costa Gomes com essa minoria activista. Apesar de tudo, ainda hoje me faz impressão lembrar como foi possível a um chefe militar receber, flacidamente, um papel dirigido contra os seus camaradas que em Moçambique se batiam.

A menos que se tratasse de incrível encenação planeada com outros fins.

Essa hipótese, no entanto, melhor explicaria a perturbação que lhes causou a minha interferência ao conseguir controlar as populações e evitar que os incidentes assumissem a dimensão que estava planeada com a marcha (que sustive) dos colonos do Chimboio sobre a Beira.

O Cor. Pinto Ferreira, desprestigiado comandante dos "GEP", cuidou de construir a tese, que alguém lhe inspirou, de ser eu o responsável pelos levantamentos populacionais. Sustentava-se que se me tinha sido possível dominá-los isso só significaria que os havia desencadeado.

Houve quem chegasse, honestamente, a acreditar nesta versão fantasista mas, politicamente, conveniente. Todavia, certos documentos apreendidos depois do "25 de Abril" demonstraram que eu não tivera a inventada intervenção provocadora.

A reacção dos militares
A reacção dos militares não tardou a surgir, pela forma desejada.

O "Movimento dos Capitães" (até essa altura marcadamente profissional e mesmo de defesa de classe) encontrou a motivação politizadora que o converteu no "Movimento das Forças Armadas". Tudo nasceu na Beira.

Os "democratas" (marxistas) cumpriram os objectivos que lhes tinham sido assinalados.

Os oficiais mais dignos converteram-se, por o serem, em agentes da rebelião extremista ao reagirem contra o gravame que os atingira. O texto dos seus telegramas, das circulares e das exposições dirigidas aos altos ccomandos agudizava-se progressivamente.

Efectivamente, em 21 de Janeiro, o directório do "Movimento" (em Nampula) fazia seguir a mensagem telegráfica que transcrevo:

"Virtude actos terrorismo fazenda Vila Pery população civil esta cidade, Vila Manica e Beira realizou manifestações. Na cidade Beira manifestação realizou-se em 17 JAN 74, começou junto edifício governo distrito, terminou messe oficiais. População civil evidenciou falta confiança FA, apedrejou edifício messe, partindo vidros, disparou alguns tiros pistola sobre o mesmo. Começam concretizar-se nossos receios criação bode expiatório. Solicitamos medidas urgentes conduzam impedir FA continuem sendo enxovalhadas.

Clique na imagem para ampliar

Manifestações Beira já referidas e repetidas dia seguinte com pedradas, insultos ao Exército incluiram general comandante chefe que foi alvo directo insultos. Cidade Vila Pery situação agrava-se ameaçando recontros entre população civil europeia e Exército. Cap. Cmds. Garcia Lopes ferido consequência pedrada. Elaborado texto documento para apresentar general Costa Gomes altura sua vinda Nampula e circular ser subscrita todo pessoal exigindo medidas imediatas. Sugerimos medidas referindo manifestações e declinando responsabilidade situação subversiva, exigindo PRETO NO BRANCO. Prestígio FA muito afectado, enxovalho ameaça irreversibilidade".

Imediatamente (em 23 de Janeiro) a comissão coordenadora do "Movimento" (a cuja direcção presidia o Cor. Vasco Gonçalves) difundia, em circular, aquele texto considerado o motivo imperioso e solidarizando-se com os anseios dos camaradas de Moçambique, anunciando o propósito de contactar imediatamente como "o mais alto escalão militar".

Para isso, aliás, não parecia ser necessário que os oficiais de Moçambique se deslocassem muito longe, uma vez que o Gen. Costa Gomes (máximo escalão militar) andava, ostensivamente, por terras moçambicanas (em zonas onde houvesse "condições de segurança") encontrando tempo para recepções e banquetes, sem que os enxovalhados denunciados lhe quebrantassem o apetite ou lhe moderassem o luzido uso das condecorações.

Oficiais mostraram-me o texto da carta-circular que lhe foi dirigida, por intermédio do comandante-chefe e em que exigiam, sem eufemismos, "a demissão imediata do governador da Beira e demais autoridades coniventes na passividade, perante as manifestações" e "imposição às entidades competentes que tomem as medidas necessárias para que não se esbocem sequer semelhantes factos". Isto era exposto colectivamente afirmando-se que "os abaixo assinados não podem deixar de assumir drástica posição, caso não venham a ser tomadas, de imediato, as medidas apontadas".

Quando conheci o documento, observei que os termos usados me pareciam pouco compatíveis com a noção que eu tinha da disciplina e comentei que se fosse eu a receber um tal papel e tivesse farda com estrelas nos ombros, não hesitaria em actuar de acordo com o RDM (Regulamento de Disciplina Militar) independentemente do número, da qualidade e da razão dos oficiais signatários.

Em resposta ouvi a jocosa observação: "Na verdade deveria ser assim, mas nós sabemos a quem estamos a escrever!"

Aquelas circulares tiveram ampla expansão em todos os sectores (dos quartéis às universidades, das empresas aos jornais) comprovando a capacidade de difusão de tudo quando seja clandestino.

Os incidentes da Beira (que só não foram mais graves porque eu o impedi) assumiram o simbolismo a que estavam destinados. Converteram-se em argumento revolucionário e fundamento reivindicativo.

Quando poucas semanas mais tarde (em Março de 1974) se difundiu em Lisboa o documento intitulado "O Movimento, as Forças Armadas e a Nação" (com orientação política que havia de servir de base ao programa do "MFA") afirmava-se a certa altura:

"À medida que as guerras em África se iam prolongando, as FA descobriram, não sem espanto por parte de muitos militares que pela primeira vez viam claro, o seu divórcio real da Nação. As FA são então humilhadas, desprestigiadas, apresentadas ao país com o responsáveis máximos do desastre.

Estava inventado o "bode expiatório" e criadas as condições para qua Nação deixasse de confiar nas suas FA. E, daí em diante, o desprestígio das instituições militares não deixa de aumentar".


Depois desta análise de quase auto-crítica (que não seria despropositado repetir, em 1976, em face da responsabilidade que as Forças Armadas tivessem no desastre descolonizador) o referido "documento" retoma o tema para recordar:

"As FA aparecem cada vez mais aos olhos da Nação, como o grande responsável não só do impasse africano, como da crise geral que atinge o país, o que não é só crise política, como também económica, social e moral.

Alarga-se assim o fosso entre as FA e a Nação, aumenta o desprestígio dos militares (os recentes acontecimentos da Beira, em Moçambique, vêm mais uma vez confirmar esta realidade por todos sentida), desprestígio esse que nenhumas medidas conjunturais poderão atenuar".


A gravidade daquela explosão popular, cuja manipulação referi, viria a ser recolhida pelo Doutor Marcello Caetano ("Depoimento", pág. 194) nos termos que a seguir reproduzo:

"O general Costa Gomes partia no dia seguinte, 17 de Janeiro, para Moçambique onde a situação se agravara. O ataque, em Manica, dos terroristas a uma fazenda e a morte de uma mulher europeia desencadearam uma onda de protestos, que por pouco se não traduziu em actos de violência da parte da população branca. E na Beira houvera manifestações em frente da Messe dos oficiais contra o que as pessoas consideravam inacção e desinteresse do Exército perante a agressividade do inimigo"

Esta síntese só evidencia como os acontecimentos de Janeiro atingiram todos os níveis e afectaram toda a gente. Para além de bem manobrados foram excelentemente explorados.

O Maj. Otelo Saraiva de Carvalho, tido como um dos principais obreiros da "revolução de Abril" e membro da direcção da coordenadora do "Movimento" na altura dos enfrentamentos, iria a confirmar mais tarde (em entrevista ao "Expresso" em 27 de Julho de 1974) a influência decisiva da reacção beirense na politização verificada, afirmando: "A partir de 17 de Janeiro, como os acontecimentos graves dos distúrbios da Beira, originados pela morte da mulher de um fazendeiro, a alguns quilómetros de Vila Pery, focalizámos a atenção dos nossos camaradas para a necessidade de entrar num campo aberto de luta contra o regime que estava constituído e que só nos "achincalhava".

Parece bem nítido, agora, que os acontecimentos da Beira (desencadeados sob a inspiração dos "democratas") foram o "detonador" da acção revolucionária que explodiu em Abril.

Era indispensável uma motivação para os "coordenadores" agitarem os sentimentos mais nobres dos seus camaradas, premeditadamente ofendidos. Nessa artimanha, manobrada pelos mais ardilosos, vieram a cair os mais sãos. E era esses que interessava motivar. Depois se controlariam ou saneariam.

Na imagem: Vasco Gonçalves, Costa Gomes e Pinheiro de Azevedo

Por isso, em princípio de Fevereiro, o Gen. Costa Gomes regressava a Lisboa trazendo na bagagem o manifesto dos "democratas" de Moçambique e o texto da reaccão dos oficiais. Tudo vinha convenientemente misturado e doseado, para utilização oportuna.

Como obstáculo à conjugação deste xadrez (em que a sorte do Ultramar se jogava) apenas havia, para Costa Gomes, a minha intervenção perturbadora.

Eu tinha impedido que a onda de protestos se não houvesse traduzido "por pouco", em actos de maior violência. Isso não convinha a quem manipulava tal jogo.

Estava demonstrado que as populações me respeitavam, seguiam a minha orientação e me escutavam mesmo nos estados emotivos mais agudos.

Disso, ficaram sem dúvidas. Não podiam consentir que isso pudesse repetir-se (ob. cit., pp. 121-126; 142-145 e 163-169).

Continua

sábado, 18 de setembro de 2010

Moçambique, terra queimada (v)

Escrito por Jorge Pereira Jardim


Na imagem: Kaulza de Arriaga ao centro

Kaulza de Arriaga deixa Moçambique

(...) Na embaixada de Portugal, em Blantyre, só o administrador Silva Marques (encarregado, entre outras tarefas, de ligação permanente com a Beira) estava a par da nossa deslocação a Lusaka. Conhecia, porém, apenas a versão combinada com os zambianos de havermos tratado de problemas de transportes em cujo quadro se inseriam os ataques da "Frelimo" contra a via férrea e as estradas.

A mesma versão referi ao Major Arnaud Pombeiro, oficial que na Beira conduzia os "SEI" (Serviços Especiais de Informação e Intervenção) que actuavam na minha directa dependência.

Com mais algum desenvolvimento, mas sem revelar os aspectos de negociação política, fiz o mesmo relato ao governador-geral de Moçambique (Eng.º Manuel Pimentel dos Santos) e ao comandante-chefe das Forças Armadas (Gen. Kaulza de Arriaga), quando com eles me reuni em Lourenço Marques, no dia 31.

Nessa noite terminava a sua comissão em Moçambique o Gen. Kaulza de Arriaga e a substituição desse chefe militar inteligente, decidido e lúcido era mais uma razão preocupante quanto ao futuro. Para além da velha amizade que nos ligava, podia confiar no seu patriotismo e capacidade profissional, servidos por invulgar preparação política. Discordámos muitas vezes, em infindáveis e vivos diálogos, porque tínhamos diferentes conceitos sobre a evolução de Moçambique e dos problemas ultramarinos. Estivemos, todavia, sempre solidários no mesmo propósito de serviço nacional, na mesma interpretação da dignidade militar e na mesma honestidade de propósitos.

Objectivamente, o seu afastamento foi uma perda, ainda que se entendessem os motivos que o determinavam. Desta convicção partilhava o governador Pimentel dos Santos que o fez sentir a Lisboa, em repetidas mensagens.

Recordo com emoção o momento da despedida de Kaulza, de quem creio ter bem merecido a dedicatória com que me ofereceu o seu livro que acabara de aparecer e recordava a missão a que se havia devotado durante quase 4 anos: "Para Jorge, camarada ideal na sua inteligência, na sua imaginação, na sua coragem, na sua crítica séria, no seu dinamismo e na sua capacidade global. Camarada ideal nesta luta pela Terra Portuguesa".
O livro intitulava-se "Coragem, Tenacidade e Fé". O Gen. Arriaga tinha tomado, como a sua divisa pessoal, os conceitos expressos nessa trilogia recolhida de homenagem que lhe haviam prestado, no dia comemorativo da carga de Macontene, os cavaleiros do batalhão de cavalaria 2923.

Por se lhe ter mantido fiel conheceu, em Portugal, a prisão arbitrária que se manteve sem julgamento, por mais de um ano, em odiosa perseguição pessoal.

Mais grave do que a saída de Kaulza de Arriaga de Moçambique, era a ascensão do Gen. Costa Gomes ao Vértice das instituições militares portuguesas como chefe do Estado Maior General das Forças Armadas. Isso muito nos preocupava e teve a agravante da sua crescente influência junto do Doutor Marcello Caetano, como conselheiro de confiança. Os meses que se seguiram viriam a confirmar a razão dessas preocupações.

Investigações em Tete

Entretanto, novo factor ia tendo crescente influência internacional e era explorado internamente pelos extremistas da esquerda que procuravam criar dificuldades ao governo. Para isso especulam sobre a condução da guerra repressiva em Moçambique, como o principal fito de atingirem as unidades de recrutamento africano acusando-as de comportamento selvagem.

Costa Gomes detestava essas tropas criadas por Kaulza de Arriaga com a minha activa colaboração. Em resultado dessa influência, o Doutor Marcello Caetano viria a referir-se a esses efectivos, afirmando que "tinham uma concepção cruel da guerra, mantendo os seus preconceitos tribais".

Tratava-se da generalização de alguns casos isolados de que as tropas metroplitanas também não estavam isentas, mas isso convinha a certos desígnios programados e que sabiam que essas forças locais seriam o maior obstáculo a vencer.

O "massacre de Wiryamu" mantinha-se nas manchetes da grande imprensa internacional enquanto os jornalistas esquadrinhavam a zona de Tete em busca de provas que documentassem esse alegado morticínio de populações civis.

Eu também estava interessado em conhecer a verdade e, quando a descobri, ficou provado que as caluniadas tropas africanas nada tinham que ver com os casos lamentáveis que, efectivamente, se tinham registado. A partir daí, a posição do Gen. Costa Gomes modificou-se radicalmente e cuidou, sempre, de encobrir o que se passara. A verdade não era conveniente para os seus propósitos.

Certos missionários (sobretudo espanhóis e alguns deles confessadamente marxistas) empenhavam-se em reunir testemunhos com o afã de provarem afirmações contidas no relatório enviado ao Padre Hastings e que tinham servido de base às sensacionais revelações do londrino "The Times".

Neste ambiente o governador-geral consentiu que eu realizasse uma investigação directa para completo esclarecimento dos factos. Para isso me deu autoridade e facilidades necessárias. Tudo me leva a crer que, nessa altura, o eng.º Pimentel dos Santos estava convencido, como eu próprio, da falta de fundamento das acusações divulgadas.

Eu dispunha de pessoal treinado para este tipo de investigações, tinha razoável conhecimento da região e sabia mover-me com desembaraço no mato. Em ensejos anteriores tínhamos dado provas disso, com a consequente punição dos culpados.

Concretamente, tínhamos intervindo no esclarecimento de incidentes registados na fronteira com o Malawi que motivaram duras e mesmo irritadas reacções do Dr. Banda que chegaram a ameaçar gravemente as relações com Portugal. Essas crises foram ainda complicadas pela atitude da embaixada de Portugal que era incapaz de compreender as realidades africanas.

Na imagem: Palácio das Necessidades

O embaixador Futcher Pereira oscilava entre a tentativa de encobrir actos evidentes e o envio de extensos telegramas para as Necessidades acusando as tropas portuguesas de violação que estavam longe de ser objectivamente comprovadas. Fazia um jogo oportunista de valorização pessoal em que a posição portuguesa, só sensível com a serena apreciação dos casos, foi progressivamente deteriorada.

Com essas manobras e beneficiando de apoio de influências em Lisboa, conseguiu manter-se no posto desde 1969 a 1972 e só dali saiu (para logo ser premiado com uma embaixada da maior confiança política) perante um ultimatum do Presidente Banda que tive de transmitir pessoalmente ao Doutor Marcello Caetano junto de quem Futcher Pereira tinha sabido insinuar-se.

Nos dois casos graves, ocorridos nas zonas de Tsangano e Moatize, a minha inervenção pessoal apoiada na valorosa equipa dos "SEI" tinha conduzido ao exacto apuramento dos factos. Para além das prontas medidas disciplinares, tinha sido feito o pagamento das compensações devidas, no Malawi, às vítimas ou aos seus familiares.

Isso irritava, em extremo, aquele mal capacitado diplomata e conduziu à quase inviabilidade de relações entre nós. As suas atitudes posteriores, sempre marcadas pelo oportunismo pessoal, demonstraram que nada perdi com o afastamento que nos separou.

Com estes antecedentes me desloquei a Tete, em 12 de Agosto, para investigar o que houvesse ocorrido.

Um relatório da Cruz Vermelha (que as autoridades tinham conseguido anular) e os depoimentos de pessoal hospitalar que havia sobrevoado a zona (com facilidades concedidas pelo Com. Paulino, da Força Aérea) forneceram-me os primeiros sinais de que alguma coisa havia efectivamente ocorrido.

Servi-me, em seguida, das estreitas relações pessoais que tinha com o Padre Ferrão, da missão de S. Pedro, nos arredores de Tete, que tinha motivos para em mim confiar por ter conseguido impedir a sua iminente prisão por actos de colaboração da "Frelimo" que lhe eram imputados. O Padre Ferrão era o único sacerdote negro da área, descendente de família prestigiosa ali há muito radicada, e parte das acusações contra ele formuladas tinham fundamento. Obtive que o processo fosse arquivado salvando esse moçambicano, honesto e patriota, que já anteriormente conhecera longos meses de prisão por motivos políticos.

Quando o procurei confirmou-me a existência de actos graves, cometidos por uma unidade militar apoiada pela DGS. Forneceu-me a indicação dos contactos que me poderiam revelar mais detalhes.

Para não comprometer o Padre Ferrão e para manter maior liberdade de movimento, combinámos que em todas as declarações à imprensa deveria sempre afirmar nada saber para além dos rumores que circulavam e, mesmo, referir o seu convencimento de que tudo se limitava a atoardas dos missionários espanhóis. Os jornalistas que estavam nessa altura em Tete (repórter fotográfico francês Patrick Chauvel, correspondente inglês Bruce Loundon e redactor Carneiro Gonçalves do "Notícias da Beira") ficaram impressionados com as respostas do Padre Ferrão e o activo inspector Sabino, da DGS, pareceu tranquilizar-se. Só o Orlando Cristina, meu experimentado companheiro de tantos anos, mantinha sorriso esfíngico e me olhava desconfiado...

Fomos do aldeamento de Mpadua e entrevistei livremente alguns sobreviventes que me tinham sido referenciados. Tinham, aliás, sido assistidos e protegidos pelas autoridades portuguesas, o que constituía forma original de se praticar o proclamado genocídio das populações. Conversando, com a paciente negligência característica dos africanos, dei-me conta de que os padres espanhóis haviam raptado uma das testemunhas mais importantes (o jovem António) e que, na véspera, haviam conduzido à missão de Boroma, a uns 30 quilómetros de Tete e sobre a margem do Zambeze, uma mulher que era a chave do problema (a Podista) a quem tinham dado dinheiro e roupas para a fazerem gravar declarações concordantes com a versão que haviam divulgado.

O meu aparecimento e a rápida intervenção graças às ajudas recebidas, começava a perturbar muita gente.

Tive a sorte de chegar a tempo de evitar o desaparecimento de declarantes imprescindíveis como o foram, além da Podista, a irmã do António, um tio deste, chamado Guisado Xavier e o chefe de povoação, Trumbuco.

Na imagem: Operação Lacrau (Norte de Angola)

O governador de Tete e o comandante militar era o coronel pára-quedista Armindo Videira, meu companheiro de guerra no norte de Angola em 1961. Oficial de notáveis qualidades, caracterizado pela sua dureza operacional, seria incapaz de cometer qualquer acto de violência desnecessária e muito menos de praticar o genocídio de populações civis. Pedi-lhe escolta para excursão investigadora pelo mato, seguindo os guias por mim seleccionados. Foram-me dadas todas as facilidades e concordou em que me acompanhassem os jornalistas presentes em Tete.

Na madrugada seguinte a pequena coluna arrancou do aquartelamento militar sob o comando do Major Xavier. Nela se incorporavam os meus especialistas do "SEI."

Seguindo as indicações dos guias e depois de horas de caminhada por terreno hostil encontrámos as povoações de Chawola, Joawo e Wiryamu com indiscutíveis vestígios de excessos dispensáveis cometidos, meses atrás, por unidade militar que actuou sob instruções precisas que não foram dadas pela ZOT (Zona Operacional de Tete). Pelas datas apuradas e pela localização do que ocorrera, apurámos que não se tratava de tropas africanas.

O Maj. Xavier estava pálido; os jornalistas que tudo documentaram fotograficamente quase sofriam náuseas; os meus homens procediam, imperturbáveis, à recolha de provas; e eu tive de manter a serenidade como se não sofresse a comoção que me assaltava.

Sem ser verdade o que os padres haviam feito correr mundo, o certo é que existia qualquer coisa de muito grave e sem precedentes na guerra em Moçambique. Com esta realidade tinha eu de me enfrentar.

Nada ocultei ao governador de Tete (sobre quem viriam a cair injustamente as responsabilidades), elaborei relatório que lhe submeti e deslocámo-nos ambos a Nampula para relatarmos ao recente comandante-chefe, Gen. Bastos Machado, o que eu acabara de apurar.

Fui, em seguida, a Lourenço Marques, onde me reuni com o secretário-geral (Cor. David Ferreira) e com o chefe de gabinete do governo geral por ter, entretanto, seguido para Lisboa o eng.º Pimentel dos Santos. Manifestei o meu propósito de seguir para Lisboa, sem demora, a fim de relatar ao governo aquilo de que era conhecedor e pedi que enviassem mensagem urgente comunicando esse meu intuito.

Ao raiar do dia, encontrei-me com os jornalistas que haviam regressado de Tete comigo, referindo-lhes as minhas intenções e pedindo-lhes que sustivessem o seu serviço noticioso por uns dias para me permitirem actuar. Foram altamente compreensivos para os argumentos que utilizei e penso que o que mais o impressionou foi a minha honesta emoção que tinham podido avaliar no local dos acontecimentos. Prometeram dar-me toda a possível colaboração. E fizeram-no.

O caso de Wiryamu

Em 18 de Agosto (apenas quatro dias sepois da conclusão das investigações) desembarquei em Lisboa e, no aeroporto, entreguei ao Dr. Feytor Pinto, que me aguardava, relato sucinto para fazer chegar sem demora às mãos do Presidente do Conselho. Disparou para Queluz, onde eu deveria comparecer, pelas 11 horas, participando em reunião que se prolongou até às 13.30.

Ali me encontrei com o Doutor Marcello Caetano que estava acompanhado pelo Ministro da Defesa Nacional (Gen. Sá Viana Rebello), pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros (Dr. Ruy Patrício), pelo Ministro do Ultramar (Prof. Silva Cunha) e pelo Governador-Geral de Moçambique (Eng.º Pimentel dos Santos).

Descrevi, em detalhe, o que apurara nas minhas diligências e entreguei cópias do relatório que era acompanhado por elucidativas fotografias. Sugeri, ainda, minuta do comunicado que me parecia conveniente publicar sem demora.

As opiniões dividiram-se em torno da apreciação dos reflexos internos ou externos de se reconhecer, oficialmente, a prática de actos condenáveis pelas nossas tropas. A única posição firme e que prevaleceu, foi a do Dr. Marcello Caetano ao afirmar que o governo não podia ocultar factos cuja natureza e extensão, agora, conhecia. Tudo se limitava, em seu entender, à forma e desenvolvimento a dar ao indispensável comunicado oficial.

Pediu a minha opinião, depois de os demais se pronunciarem, e creio que fui categórico: nenhum país e nenhum governo pode ser responsabilizado por actos condenáveis praticados no decurso de uma guerra, sobretudo quando esta assume os aspectos característicos da guerra subversiva em que os guerrilheiros se misturam com as populações. Até porque tinha feito a guerra, compreendia a reacção excessiva das tropas perante o choque de acções inimigas que acabavam de vitimar caramadas seus. Nenhum país e nenhum governo pode ser incriminado por rejeitar acusações, enquanto não possui provas sobre a existência desses actos. Mas nenhum governo pode encobrir tais procedimentos quando saiba que eles foram cometidos e deixar de punir, no foro militar, os responsáveis. Se o não fizer torna-se conivente com que haja ocorrido com a agravante de não se poder justificar com a excitação emocional que pode entender-se nos combatentes, mas não se perdoa nos governantes. À luz destes princípios normativos tinha de ser tomada a decisão quando todos sabíamos o que na verdade acontecera.

O Doutor Marcello Caetano apoiou esta posição e retirou-se, por minutos, para voltar com o texto do comunicado que redigira e foi nesse mesmo dia divulgado: admitia-se a prática de, pelo menos, um acto reprovável em Moçambique, por parte de uma unidade militar e anunciava-se o prosseguimento de rigoroso inquérito para punição dos culpados.

Inquérito sem seguimento
O Presidente do Conselho voltou a convocar-me para Queluz, onde passava a época veraniega, no dia 21 (era terça-feira) e conversámos longamente nos jardins do palácio.

Fez-me repetir tudo quanto já anteriormente lhe dissera, manifestou irritação perante a negligência investigadora do Cor. Videira cujo afastamento do governo de Tete decidira e interrogou-me sobre as minhas ideias acerca da condução do inquérito oficial aos "massacres".

Respondi que deveria ser conduzido por um oficial general que conhecesse bem as condições em Moçambique, que tivesse prestígio no Exército para se estar seguro de as suas conclusões serem justas e objectivas, que fosse insuspeito de racismo ou desamor pelas populações africanas e que oferecesse uma verticalidade moral impecável.

Perguntou-me onde seria possível descobrir esse homem excepcional e, embora sabendo da pouca simpatia do Doutor Marcello Caetano pela pessoa a propôr, indiquei-lhe o nome do Brigadeiro Silvino Silvério Marques.

Retorquiu-me que considerava excelente sugestão e assegurou que seria esse o designado. Tudo se passaria em questão de dias.

Separámo-nos e decorreram semanas. O Brig. Silvino Silvério Marques não foi nomeado e nem sequer contactado para o efeito. Segundo informações que recolhi, o Gen. Costa Gomes dissuadira disso o Presidente do Conselho.

Conforme o Doutor Marcello Caetano viria a escrever no seu "Depoimento" editado em Novembro de 1974 (a páginas 183) "daí a tempos, o brigadeiro que seguira para fazer o inquérito regressou, com um relatório onde explicava, a seu modo, os acontecimentos e emitia a opinião de que não deveriam ser levantados os autos de corpo de delito".

E comenta (a páginas 184): "Em todo o caso e até porque o contrário se prestava, como prestou, a especulações graves, os comandos superiores deveriam ter procedido com rigor contra aqueles que, desrespeitando as leis da humanidade, mancharam o nome português" .

No vértice da hierarquia estava o Gen. Costa Gomes que manteve, no entanto, a confiança do Primeiro-Ministro que, por sua vez, presidia ao Conselho da Defesa Nacional.

O tal brigadeiro, que seguira para Moçambique para fazer o inquérito, nunca me procurou ouvir. Cruzámo-nos, por acaso, no aeródromo de Tete e apenas o Cor. Rodrigo da Silveira me disse quem ele era e o que ali fazia.

Se chegou às conclusões referidas pelo Doutor Marcello Caetano e estas foram homologadas pelos seus superiores, é evidente que contradiziam frontalmente o que se continha no meu relatório apresentado ao governo. Pelo menos, eu deveria ter sido responsabilizado pelas afirmações que produzira. Tal não aconteceu e só voltei a ter notícia do assunto quando, em Agosto de 1974, as autoridades revolucionárias pretenderam negociar o meu silêncio.

Isso relatarei adiante, explicando porque não me alargo mais sobre o "Massacre de Wiryamu".

Lapsos a corrigir
Um ponto tenho, todavia, que mencionar para corrigir inexactidão contida no já referido "Depoimento" do Doutor Marcello Caetano.

Com efeito, afirma (a páginas 183): "Só posteriormente vim a apurar o que se passara em Chawola. Insisti com o Ministro da Defesa Nacional e do Exército para que fosse de Lisboa um inquiridor com poderes para imediatamente instaurar autos de corpo de delito contra responsáveis; determinei que não fosse reconduzido o comandante-chefe de Moçambique porque mesmo que não lhe coubessem responsabilidades directivas, era quem deveria ter actuado imediatamente; exonerou-se o governador de Tete".

Ora acontece que isto não é exacto.

Só por meu intermédio e em 18 de Agosto, veio o Primeiro-Ministro a apurar o que se passara em Chawola. O Gen. Kaulza de Arriaga havia deixado o cargo de comandante-chefe de Moçambique mais de duas semanas antes (em 31 de Julho) e a decisão de o substituir havia-lhe sido comunicada quando ainda não tinham surgido em Londres as revelações de Padre Hastings. Apenas por lapso pode o Doutor Marcello Caetano haver relacionado, posteriormente, os dois casos.

Por outro lado, é incompreensível que se tivesse mantido a injustiça à exoneração do Cor. Videira. Se o inquérito conclui não haver motivo sequer para serem levantados autos de corpo de delito e essa conclusão foi superiormente homologada, teria de entender-se que, afinal, o governador de Tete não podia ser punido por actos inexistentes.

Estes comentários evidenciam a desorientação que imperava nos altos comandos e se estendia ao governo. Talvez aí resida a explicação dos casos deploráveis, de violência desnecessária, registados em Moçambique por parte de tropas já desesperadas.

Menos explicável, no entanto, é o silêncio que se fez sobre o assunto depois da "revolução de Abril" e quando o Gen. Costa Gomes lançava diatribes revolucionárias anti-colonialistas contra outros que nunca tiveram actuação semelhante à que naquele lamentável caso se verificou. Até pode ficar a suspeita de que obtidos os efeitos desejados (ou não se alcançando outros que se pretendiam) a campanha internacional emudeceu cumprindo ordens superiores. Essa hipótese também pode esclarecer a manobra de negociação que procurou mais tarde envolver-me.

Colapso militar
Durante aquele meu encontro, em Agosto, com o Presidente do Conselho, fiz-lhe menção das esperançosas perspectivas que pareciam resultar dos encontros de Lusaka que prosseguiam à sombra do problema dos transportes.

Embora descrendo da possibilidade de um entendimento negociado, confirmou-me os encontros que tivera com Mark Chona, que o impressionara por forma muito favorável e os termos em que haviam decorrido.

Encorajou-me a prosseguir os meus contactos pesquisando a viabilidade de soluções honrosas.

O quadro da situação militar preocupava-o, acima de tudo, e encontrei-o numa posição vizinha do derrotismo.

Quando nos despedíamos, perguntou: "Você já pensou no que fará se houver um colapso militar em Moçambique?". Fitei-o perplexo e respondi: "Nunca pensei em tal". Voltou a insistir: "Não pensou ou não mo quer dizer?" Repeti que, efectivamente, nunca tinha admitido tal hipótese.

Disse-me, então, em tom desalentado: "Pois será bom que pense".

Claro que a partir daí, nunca mais deixei de pensar nisso.

E redobraram os meus propósitos de encontrar uma solução negociada.

Paz para todos sem desonra para ninguém

O resto do mês de Agosto e os primeiros dias de Setembro esvaíram-se rapidamente mas as sondagens que realizei, nos sectores mais evoluídos, demonstravam a aceitação muito generalizada de esquema próximo das bases que o Dr. Kaunda me havia proposto.

Aquele papel vinha sendo discutido entre mim e Pombeiro de Sousa e harmonizámos os nossos pontos de vista, antes de voltarmos a Lusaka, em 10 de Setembro.

Assentámos nos seguintes pontos a propor:

a) dividir o documento em dois "papéis" apresentando num, os princípios fundamentais e reservando para o outro a estrutura concreta com vista à independência. Esta separação tinha o propósito de atenuar o carácter monolítico do documento e consentir a apresentação do problema por fases. Se eu conseguisse ter êxito na minha aproximação com Lisboa, apenas exibiria o primeiro "papel" (o dos princípios) como passo mais fácil de ser aceite. Se sentisse encorajamento avançaria, então, com o segundo "papel" mas, na hipótese de insucesso, saberíamos em que terreno estávamos e não teria revelado os propósitos mais concretos que nos animavam. Por outro lado, tínhamos de estar seguros da concordância da "Frelimo" com os expressos termos normativos, contidos no segundo "papel", e para isso, teríamos de pedir garantias aos Dr. Kaunda.

Este procedimento parecia-nos indispensável na difícil posição de negociarmos com os dois lados.

b) No texto, propunhamos substituir todas as expressões que tivessem sentido anti-colonialista ou de condenação da política portuguesa seguida em relação ao Ultramar. Tratava-se, aparentemente, de preocupação secundária, mas a verdade é que o fraseado muito poderia afectar a sensibilidade dos governantes portugueses.

c) Reforçámos a referência à condenável e, sobretudo, indesejável intervenção das grandes potências nos assuntos africanos. Pelo nosso lado, visávamos o bloco comunista (aliás expressamente referido no texto inicial), mas concordávamos em que essa preocupação se dirigisse ao imperialismo capitalista que pretendíamos ver arredado das nossas soluções.

Na imagem: Zimbabwe (antiga Rodésia)

d) Não tocámos nas referências à República da África do Sul e à Rodésia. Nem tínhamos procuração para os defender, nem nos interessava fazê-lo em solidariedade com forças que cada vez mais pareciam desinteressar-se dos nossos problemas e cuja companhia nos era, ainda por cima, incómoda. Limitámo-nos a acautelar, realisticamente, a indispensabilidade da cooperação económica, separando-a da colaboração política e militar.

e) Reforçámos os aspectos ligados ao multi-racialismo, com ênfase na "Comunidade Lusíada" e procurámos generalizar os princípios aos outros territórios ultramarinos portugueses, evitando concretizações que poderiam ser contrárias às diferenças estruturais.

f) Admitíamos, expressamente, a participação da "Frelimo" na futura estruturação político-administrativva de Moçambique, mas sem aceitar que a sua posição (eventualmente dominante) viesse a ser exclusivista. Procurávamos defender o possível pluralismo, com representatividade de todas as forças autenticamente existentes.

g) Encorajavam-se as fórmulas vagas, contidas no documento inicial, quanto à oportunidade de se concretizar a independência e quanto aos passos a dar antes disso. Todos carecíamos de tempo.

A essência das propostas formuladas pelo Presidente Kaunda (dois meses antes) era respeitada e os nossos últimos retoques foram já dados no "Intercontinental" depois da nossa chegada (ob. cit., pp. 107-120).

Continua