quarta-feira, 12 de setembro de 2012

… E rebenta a violência!

A notícia posta a circular em Lourenço Marques, sobre as conclusões a que se havia chegado nas con­versações de Lusaka, desencadeia então, na tarde de 6, as primeiras de uma série de acções provocadas por reaccionários brancos, que iriam cobrir de luto toda a cidade.

Quando um carro passava em plena baixa citadina, ostentando uma grande bandeira da FRELIMO1 foi voltado por um grupo de brancos, ao mesmo tempo que a bandeira da FRELIMO era destruída. As fotografias de Samora Machel que os ocupantes do veículo distribuíam são rasgadas, e logo se forma uma enorme multidão com grande predominância de brancos, a qual, incitada por alguns elementos mais excitados, se dirige ao edifício onde funciona o matutino Notícias; ali, parte todas as vidraças do piso térreo; um repórter fotográfico do jornal que pretendeu tirar fotografias naquele local, foi barba­ramente agredido e forçado a fugir. A multidão invade o rés-do-chão do edifício, põe em fuga o pessoal das oficinas, e destrói parte da maquinaria.

Na revista Tempo1 acontece o mesmo, depois de a multidão, para ali chegar, ter atravessado quase toda a cidade, engrossando progressivamente o seu caudal.

Rui Marote, operador cinematográfico, é agredido, roubam-lhe a máquina, retiram o filme, e expõem-no ao Sol, a fim de o inutilizar. Veículos do Notícias e de A Tribuna são apedrejados, voltados, e incendiados. Estes dois jornais diários, ambos propriedade do Banco Nacional Ultramarino, haviam dedicado as respectivas duas últimas edições às conversações de Lusaka, manifestando-se abertamente partidários de um governo transitório presidido pela FRELIMO.

A intervenção de forças da Polícia Militar e da PSP, coadjuvadas com o precioso elemento dissuasor que são os cães-polícias, permitiu que a multidão não levasse a cabo os seus intentos de destruição total. Mas não desarma. Sobe a Avenida Castilho, detém-se frente ao edifício onde funciona o Rádio Clube de Moçambique, e enquanto entoa em unís­sono o hino nacional português, destrói todas as vidraças à pedrada. Ali, também só a intervenção policial permitiu que o vandalismo não alastrasse. Enquanto isso, das redacções dos dois diários assal­tados, pedem-se chamadas telefónicas urgentes para Lusaka, e informa-se a delegação da FRELIMO quanto ao que se está a passar. Ao cair da noite, o edifício é de novo assediado por uma multidão que empunhava a bandeira nacional e cantava o hino português, numa tentativa de assalto às instalações. Chovem pedras e insultos, e a força policial ali pos­tada dificilmente consegue suster os vândalos.

Ainda durante a noite, é forçada a porta da sede da agremiação política Democratas de Moçambique, na Avenida 24 de Julho, e é lançado fogo às insta­lações. A Associação Académica de Moçambique é também assaltada, mas os energúmenos não conse­guem ir além de apedrejamento.

Estava assim desencadeado o processo de «reivin­dicação» branca, o qual havia tido já os seus prelúdios, quando semanas antes um comando de racistas brancos assaltara as oficinas do Notícias e de A Tribuna, fazendo explodir ali duas bombas.

Mau grado estes acontecimentos, ambas as dele­gações ainda presentes em Lusaka manifestam-se opti­mistas quanto ao futuro. Mas em Lourenço Marques, a população é subitamente acordada em sobressalto, à primeira hora do dia 7, por uma violenta explosão, registada num paiol de munições da Força Aérea, situado à saída da cidade, junto ao aeroporto. Era o prelúdio dos acontecimentos que iriam marcar de forma inesquecível o dia 7 de Setembro, na capital moçambicana, de onde, entretanto, se conhecem novos pormenores quanto aos incidentes que já se haviam verificado na própria quinta-feira, dia 5, e que só muito mais tarde viriam a ser relatados pela Imprensa.

Assim, nos distúrbios registados nesse dia, duas figuras características da cidade são apontadas como cabecilhas dos motins: o «Fonseca maluco», ex-agente da Polícia de Segurança Pública e graduado da Organização Provincial de Vigilância e de Defesa Civil (OPVDC), assim a modos que uma milícia branca, e Gonçalo Mesquitela, filho do antigo depu­tado à Assembleia Nacional fascista pelo círculo de Moçambique, e membro destacado da ANP local.

No sábado de manhã recomeçam os incidentes. Surgem carros por toda a cidade, guiados por brancos, e buzinando insistentemente. Na estátua de Mouzinho de Albuquerque, frente aos Paços do Concelho, é colocada uma bandeira nacional e regista-se impres­sionante manifestação de «nacionalismo» por parte de milhares de brancos. O cortejo automóvel dirige-se então ao Estádio da Machava, onde se realizava o comício pró-FRELIMO, engrossando o número de participantes a cada esquina por que passava. A tre­zentos metros do estádio são interceptados por forças policiais e do exército. Desistem dos seus intentos, e é então que um pouco por toda a parte surgem «milagrosamente» milhares de bandeiras verde-rubras.

Com a cidade em agitação total, os manifestantes dirigem-se, cerca das dezasseis horas, para as ime­diações do Rádio Clube de Moçambique, onde, desde a noite anterior, havia tomado posição um «comando» armado.

A multidão é imensa, e o trânsito começa a ser convenientemente desviado para outros locais, tarefa a que se propuseram improvisados «sinaleiros» providencialmente saídos da multidão.

Pelas dezoito horas e vinte minutos, com Sérgio Cardiga (filho de um importante latifundiário e comerciante, e neto de um deportado para Moçam­bique, por crimes de jurisdição comum praticados em Portugal) à frente do grupo de «comandos» e empunhando uma «Magnun 400», são forçadas as portas do edifício. No interior, dedicam-se à destrui­ção. E alguém lhes recorda que a aparelhagem técnica deve ser poupada, uma vez que sem ela o golpe de mão perderia o seu efeito.

Começa então a série de emissões da «estação--pirata». Mário Soares, diz a rádio, bem como Al­meida Santos, eram traidores que haviam vendido Moçambique. Sabe-se então que esta acção se deve ao MOLIMO (Movimento de Libertação de Mo­çambique), que é dirigido por Gomes dos Santos, do FICO, ao qual estão associados Hugo Velez, Pires Moreira, Vasco Cardiga, Gonçalo Fevereiro, Uria Simango, Daniel Roxo (o célebre comandante de milícia acusado de vários massacres de popula­ções negras no Norte), Segurado (ex-inspector-chefe da PS P, altamente comprometido com a PIDE), e outros.

Gomes dos Santos utiliza então os microfones para anunciar que o MOLIMO controlava a situação. Convida a população a concentrar-se junto ao Rádio Clube, e anuncia ter o MOLIMO tomado conta do Governo. Pede a todos aqueles que se sentissem com capacidade governativa para se dirigirem aos revoltosos, porquanto «o programa de Lusaka não será posto em prática, pois agora Moçambique é livre».

Nas emissões da rádio-pirata afirma-se constantemente que Moçambique inteiro está com os revolto­sos, apela-se para militares com nomes sobejamente conhecidos, afirmando-se estarem eles com os dissi­dentes. E diz-se que o presidente da República estaria solidário com a acção levada a cabo, e proferiria a todo o momento uma proclamação.

Esta é a única voz que se ouve em todo o Sul de Moçambique. Os jornais estavam paralisados pela selvática destruição das oficinas, uns, enquanto o matutino Diário, propriedade do Arcebispado, que estava suspenso há várias semanas, também não sai.

À cadeia da Machava dirige-se um grupo chefiado por um elemento do MOLIMO, que põe em liber­dade oitenta agentes da ex-PIDE que ali estavam detidos. Os dirigentes dessa polícia política são então vistos a passear «calmamente» pelas ruas da cidade.

Pelo teor da propaganda lançada através da Rádio, começa no entanto a perceber-se, ao longo do dia de domingo, que os revoltosos parece não saberem bem o que querem. Começam por atacar a FRELIMO, chamando-lhe organização de facínoras, e a Samora Machel «ex-enfermeiro sem categoria intelectual para governar», que deseja um governo «uni-racial», etc. Horas volvidas fazem um apelo aos militantes da FRELIMO, com os quais desejam dialogar. Ao Go­verno português tão depressa chamam de colonia­lista, como, afirmando-se democratas, informam que esperam orientações de Lisboa.