quinta-feira, 9 de agosto de 2012

“O Vento Sopra do Norte”: O baptismo de Lucrécia Paco

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Filme_ventosopradonorte Foi há 24 anos que o crepitar dos teletipos anunciou a vinda ao mundo do primeiro grande filme moçambicano. José Cardoso, o seu autor e realizador baptizou-o com o nome “O Vento Sopra do Norte”. Era no norte do país que, segundo Mário Pinto de Andrade, “as balas começavam a florir”.
Maputo, Quarta-Feira, 15 de Setembro de 2010:: Notícias
O período pós II Guerra Mundial marcou o início das lutas pelas independências de muitos países da África. Portugal teimava em manter um império colonial que incluía, entre outros países, Moçambique. Entre as estratégias de manutenção das colónias os portugueses criaram uma máquina de opressão treinada para “esmagar” qualquer tipo de revolta. É por esta razão que em 1960 se deu o massacre de Mueda, em 1967 o de Wiriamo, entre outras atrocidades do regime colonial.
“O Vento Sopra do Norte” é um projecto cinematográfico que regista este momento da história de Moçambique. O enredo debruça-se sobre os últimos momentos da ocupação colonial que o autor fixou em 1968. As cenas relatam o progressivo desenvolvimento da guerra de libertação de Moçambique, o sentimento generalizado de descrença, de confusão e pânico que se instalava entre os colonos e o início da fuga generalizada para a metrópole.
A redacção do guião levou cerca de um ano. A produção envolveu todos os técnicos do Instituto Nacional do Cinema (INC). O filme foi financiado na totalidade pelos fundos do INC. Entre os actores principais estava Lucrécia Paco, ou seja Zita no filme.
Esta personagem representava uma combatente clandestina. A sua participação no processo libertário fê-la heroína. “É por isso que tinhas o administrador e os cipaios de olho nela”, diz Lucrécia.
Foi uma experiência importante para a actriz. Neste filme havia aquelas cenas de “beijar” de “pegar as pernas”, de “mostrar os seios” que careciam da autorização dos pais. Neste filme inaugural do cinema moçambicano pós-independência ela contracenou com Gilberto Mendes e Emídio de Oliveira. Entre os vários personagens encontravam-se cipaios, soldados do exército português, guerrilheiros da FRELIMO, empregados domésticos, agentes da PIDE, polícias, prostitutas, entre outros.

TRAJECTÓRIA ARTÍSTICA

Maputo, Quarta-Feira, 15 de Setembro de 2010:: Notícias
Os homens são uma amálgama de factores. Eles são produto e consequência do lugar onde nascem, das suas vivências, dos sons que amiúde invadem os seus tímpanos no dia-a-dia de trabalho e de lazer, das coisas e do mundo social com que interagem.
Graças às canções dos homens que dançavam makwaela, dos batuques dos maziones e dos ngomas dos curandeiros na zona suburbana adjacente ao Aeroporto de Mavalane, onde nasceu, no longínquo ano de 1969, Lucrécia Paco teve nesse lugar o pote donde bebeu as tradições culturais e deu os seus primeiros passos de iniciação artística.
O sonho de querer ser artista criou-a muitos dissabores. “Quando comecei a estudar, tinha seis anos, apanhei um bocado do sistema colonial, que interditava o uso das nossas línguas maternas. Eu dançava para as minhas amigas, imitava aqueles ritmos que via nos rituais dos curandeiros. Muitas vezes fui repreendida e levei palmatoadas”, diz Paco. “Mas nunca parei de perseguir o meu sonho”.
Dançava xingomana, declamava sem saber o que estava a dizer. “Mas as pessoas ‘cungavam-me’, com moedas, como forma de estimular-me e agradecer. Eu não recolhia aquelas moedas. O que eu queria era só dançar. A dança era como se fosse uma espécie de libertação, uma catarse”.
Em 1975 as balas que já floriam nas matas de Moçambique saldaram-se na conquista da independência do país. No ano seguinte, com as nacionalizações na área de habitação, muitos moçambicanos “invadiram” a cidade. A família Paco não foi excepção.
Na arena artística, o Teatro Avenida transforma-se na primeira catedral de teatro. Ali se exibiu “Javali-Javalismo”, uma peça feita com muitos actores vindos da luta armada de libertação nacional. Mais tarde surge a Associação Cultural Txova Xita Duma e, em 1984, Lucrécia tem a oportunidade de ver Ana Magaia em palco. “Numa das cenas ela olhou para o público e fixou-me a vista. Naquele encontro de olhares, senti um chamamento. Pareceu-me que me estava a hipnotizar. E eu disse: “um dia quero estar no palco”. Foi assim que nasceu em mim a pessoa da actriz”, lembra.
Em Janeiro de 1985, depois de fazer uma prova, é seleccionada para o elenco da peça “A Revolta da Casa dos Ídolos”, a única peça de teatro da lavra literária do escritor angolano Artur Pestana, o famoso Pepetela. Estreia-se fazendo o papel de menino que vai assistir ao atear do fogo na Casa dos Ídolos, a catedral sagrada dos “manis” do antigo Império do Congo.
Sob liderança de Manuela Soeiro juntou-se a um grupo de artistas que em 1986 fundou o Mutumbela Gogo, o primeiro grupo profissional de teatro de Moçambique no período pós-independência.
“Nove Hora”, de Rui Nogar, “As Mãos dos Pretos”, de Luís Bernardo Honwana, “Aliados Naturais”, uma adaptação do texto “Medalhas Trocadas”, de Mia Couto, e “Qual é a Coisa, Qual é Ela?” são algumas das peças em que ela participa como actriz.
No seu vasto palmarés artístico, Lucrécia Paco é uma das mais cintilantes estrelas da arte moçambicana. E conta com muitos trabalhos de âmbito internacional. Recentemente, fez parte de um grupo de artistas que trabalhou no âmbito do World Theater Project, com elementos da Índia, China e Maurícias.”Este projecto abriu-me as portas para aprender um pouco da Comedia de l’Art com o mestre Donato Sartore, um artista que trabalha directamente com Dario Fo, escritor, dramaturgo e comediante italiano, um ícone de teatro mundial e Prémio Nobel da Literatura de 1997”
Nos últimos anos tem estado a trabalhar com a Edith Colbert, uma encenadora alemã de Estugarda que colabora com o Theatre Tribune. Teve a honra de trabalhar com os dramaturgos suecos Hening Mankel e Eva Bergman.

ENCONTRO COM O CINEMA

Maputo, Quarta-Feira, 15 de Setembro de 2010:: Notícias
“Lena Procura seu Pai” foi o primeiro filme que os olhos da Lucrécia Paco tiveram oportunidade de beijar. “Não me lembro da origem, mas na altura exibia-se muitos filmes russos e jugoslavos nas salas de cinema da cidade de Maputo”. Depois do filme foi para casa fascinada. Pensava ter visto um mundo especial, não sabia que aquilo não era a vida real porque ainda não sabia o que era ficção.
“O meu pai é que me explicou que cinema é ficção, é algo criado, é arte. Eu pensava que aquela cidade do filme que acabara de ver existia na realidade, que havia uma magia qualquer que seguia aquelas crianças. O meu pai disse-me que aquelas crianças estavam a representar, eram artistas de palmo e meio”.
A primeira experiência de actriz de cinema deu-se no documentário “Maputo-Mulher”, depois de um inesquecível encontro casual com Orlando Mesquita. Foi neste projecto cinematográfico que Paco teve a ímpar oportunidade de conhecer e contracenar com a Ana Magaia e Lina Magaia, dois nomes sonantes da nossa cultura. “Fiz um papel secundário. Tive uma pequena fala”. Para muitas pessoas aquilo não era nada, porque ela não teve um papel relevante. “Para mim era o galgar de mais uma escada na realização do sonho de ser actiz”. Foi esta experiência que na altura a catapultou para ser elegível entre os actores do filme “O Vento Sopra do Norte” do realizador moçambicano José Cardoso.
  • Guilherme Mussane

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