quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O Julgamento de Samora” de Severino Ngoenha

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Machel_icone_capa Por: José P. Castiano
Princípios do séc. XVII, Veneza, no porto da cidade. Os senhores do Conselho Municipal da cidade estão todos presentes. Seguindo em frente, o amigo de Galileo Galilei, Sagredo e, atrás deste, Virgínia Galilei, a filha de 15 anos, carregando uma caixa de veludo, em cima da qual está a “invenção”, um telescópio de ca. 60 cm, embrulhado num estojo de pele. Galeleo no pódio, preparado para o grande momento. Atrás dele está um pequeno estrado onde o telescópio será, segundos depois, exposto. Vigilante, mais atrás ainda, está o sempre atento Federzoni, o Linsenschleifer (do alemão: “afiador de lentes”). Esta é a descrição do cenário que o dramaturgo marxista alemão e escritor do teatro épico Bertold Brecht faz, na sua obra teatral Galileo Galilei, sobre a cerimónia da entrega de mais uma invenzione deste cientista italiano à Repubblica Veneta.
Na sua intervenção, Galilei começa por dizer que ele, como docente da Universidade de Pádua, não via a sua tarefa como sendo somente a de ensinar, mas também pôr à disposição da sua Repubblica invenções “úteis” que tragam prosperidade para todos e que contribuam para o progresso da ciência. O fabrico do telescópio levara-lhe 17 anos (1592-1610) de “profunda pesquisa”, sublinha ele. Depois do discurso de entrega, o próprio Galelei murmurou para Sagredo, o amigo ao lado: “foi uma perca de tempo”.
A “perca de tempo” justificava-se pelas cenas que se seguem na obra de Brecht. O curador da cidade, que falou em seguida, enalteceu aquela invenzione porque permitiria ao exército veneziano “ver e contar os barcos de guerra dos inimigos que se aproximassem à nossa costa duas horas antes de chegarem e, assim, decidirmos se vamos enfrentar o inimigo ou fugir”. Um dos senadores, olhando para a cidade pelo telescópio disse: “Daqui posso ver o forte de Santa Rosita: estão a almoçar peixe grelhado. Que apetite...!”. Um segundo senador, olhando pelo mesmo telescópio, afirmou algo contrariado: “terei que tirar a banheira da varanda do quarto da minha mulher...”. Pela invenção do telescópio Galileo Galilei acabou recebendo apenas 10 Skudi. O próprio Galilei retirou-se murmurando: “pergunto-me seriamente se, com esta coisa, não irei provar uma certa teoria...”. A “certa” teoria refere-se à heliocêntrica pela qual viria a ser condenado à morte pela Igreja Católica, num julgamento macabro.
São assim também os filósofos: falam para o futuro, usando o passado-presente. Para nós moçambicanos, há um espectro que paira na nossa História. É o espectro passado-presente de Machel. Como “julgar” este espectro? Por aquilo que Machel, como homem, foi? Ou por aquilo que ele representa, como símbolo, na História de Moçambique? Ngoenha acaba de lançar um livro intitulado Machel: Ícone da 1ª República? (Ndjira 2009) Este livro pretende ser um “Julgamento de Samora” (aliás este era o título inicial do livro que, por razões para mim pouco defensáveis, foi mudado). Alguns poderão usar o livro para olhar somente o passado na História de Moçambique. São os “nostálgicos e saudosistas que com a morte do Marechal presidente perderam os lugares de honra e de poder que ocupavam” (p.11). Para Ngoenha, os que assim o fazem, não têm de facto saudades do Marechal-Presidente e do que ele representa na História de Moçambique. Chorariam sim pelos privilégios que perderam. A prova disso é só olharem para como esses saudosistas e nostálgicos vivem hoje, diz-nos Ngoenha. Para esses, Machel deve ser enterrado como homem e como símbolo.
Outros, porém, julgarão (ou julgam) o Marechal da 1ª República pelo seu símbolo, por aquilo que ele representa. Estes homens e mulheres identificam-se pelo modelo de sociedade que Machel defendeu: justiça, solidariedade, trabalho, unidade, igualdade, anti-racismo, anti-tribalismo... Ou seja, tal e qual como Galileo Galilei pretendia com o telescópio, ver as estrelas e fundamentar a teoria heliocêntrica, esse grupo de moçambicanos, através de Machel, poderão escrutinar o futuro do país. Assim, para esse grupo de pessoas, julgar Machel, é um “pretexto para criticar indirectamente o sistema, o regime político e os governantes actuais” (p.11).
Assim, a pergunta-chave do livro Machel é: “... quem é que morreu, quem enterrámos em 28 de Outubro, o homem Machel, o presidente ou o símbolo?” A resposta de Ngoenha é clara. Machel foi enterrado como um faraó, isto é, selado hermeticamente numa tumba bem profunda com tudo o que ele tinha: ideologia socialista, justiça, patriotismo, papel do Estado e do partido e até aos homens que lhe foram fiéis. Ao mesmo tempo, porém, em alguns momentos da nossa História, o desenterramos (e vamos continuar a fazê-lo, sempre que necessário). Melhor: está enterrado o espírito de Samora, mas não está morto. O espectro da liberdade, que ele representa, ainda paira no ar.
Com esta obra, Ngoenha quer desenterrar Machel para ser “julgado”. Para esse julgamento ele convoca uma juíza muito estranha: a Maát[1]. Sendo do antigo Egipto, esta justiceira fazia muito tempo que não era acordada do seu sono secular para um julgamento. Mas é a única(?) que poderia julgar aos homens da dimensão de Samora Machel; de facto ela não julga os homens e seus actos; a Maát julga sim ícones (deuses laicos) porque, eles sozinhos, pela sua grandeza, incarnam a verdade e o espírito de toda uma época. Dão seu nome a essa época. Por trás da escolha da Maát, Ngoenha quer interrogar o próprio espírito da justiça na História de Moçambique e hoje.
Não posso deixar de dizer que a filosofia tende a ser des-humana. Pois, por excesso de racionalidade, ela tende a fulminar, algumas vezes até a “desculpar”, os actos irracionais dos homens-heróis ou ícones. O filósofo Mark Rowlands escreve, referindo-se a esta tendência da filosofia, no seu mais recente livro O Filósofo e o Lobo (Lua de Papel, 2009), que “os filósofos deviam receber condolências e não parabéns”. A questão é a seguinte: ao “empurrar-nos” para, como povo, julgarmos o símbolo que Machel representa, será que Ngoenha nos aconselha a “esquecer” o homem-Samora e os seus actos? Ou a figura e o uso do símbolo é a forma mais simbólica que a filosofia tem de considerar somente os bons actos do homem Machel (e, naturalmente, pôr na balança da Maát) e para ela própria – a filosofia – não se “sujar” neste processo?
Numa primeira leitura o livro parecera-me sugerir algo feio para o nascimento de uma filosofia moçambicana da história: Perdoar as “pequenas injustiças” à luz dos grandes actos históricos. Pareceu-me que Severino sugere: “podemos tirar a liberdade, a justiça, esconder a verdade aos homens de hoje porque temos em mente a liberdade, a justiça, a verdade do amanhã”. Eu teria muitos problemas em aceitar se essa fosse a forma que Ngoenha nos sugere para que uma filosofia moçambicana da História, com este livro, seja fundada e fundamentada.
Depois duma segunda leitura, porém, vejo que não. Ngoenha usa a ironia como estilo de escrita, sobretudo nas passagens que se refere aos momentos complicados da História contemporânea de Moçambique. É nesses “momentos” onde a acção do Machel-homem sobressai em relação ao que Ngoenha propõe como sendo o Machel-símbolo. Escolhi duas passagens do livro de Ngoenha que mostram que o autor não nos quis fazer esquecer o Machel-homem. A dado passo lê-se: “Distraidamente, [Samora] deitou um pouco de vinho no chão. Quando viu que todos olhavam para ele esperando uma explicação, ele sorriu e disse: É para os nossos antepassados: É para Mondlane, Simango, Joana Simeão, para todos aqueles que morreram e até mesmo para os portugueses. Sabem, não era contra os portugueses que nós lutávamos, nem sequer contra as suas ideias sobre eles e sobre nós. Nós lutamos, isso sim, para destruir o velho mundo, é para isso que ao lado dos portugueses tiveram que sucumbir, com a queda desse mundo, homens como Simango, Joana Simeão e outros” (p.66). E mais adiante Ngoenha, usando a voz de Samora, diz: “Eu e Simango divergimos quanto aos objectivos da luta e quanto à orientação a dar ao país depois da independência. Mas temos uma coisa em comum: engajámo-nos à custa das nossas vidas para defender os nossos ideais” (p.70).
Parece-me não ter sido fácil para Ngoenha manter-se numa leitura filosófica da História recente de Moçambique e da Frelimo sugerindo, por um lado, uma leitura do símbolo Machel, mas, por outro lado e ao mesmo tempo, chamando-nos atenção aos actos singulares de injustiças perpetrados em nome desta mesma História. Nesta óptica, Machel: Ícone da 1ª República? é um livro fundacionista de uma filosofia moçambicana da história. Será uma filosofia informada por uma leitura de “a história me absolverá” (ou me condenará) do companheiro Fidel. Assim, é caso para se perguntar se a nossa história terá mais ícones a julgar e o que eles irão simbolizar?
No fim, é o próprio Machel que exige a todos nós uma coisa muito simples: “que cada um de vós meta na balança da Maát as representações que tem da minha vida e da minha obra”. Ele quer submeter-se a um julgamento sim, mas não de uma justiça capitalista. Samora quer que todos e cada um de nós o julguem. “Que o povo seja instaurado juiz da minha causa” é o último desejo de Machel.
“Aqueles que desejam conquistar o favor de algum príncipe costumam apresentar-se-lhe com os bens que mais prezam ou com aqueles que crê dar mais prazer. Por isso é frequente vê-los oferecer cavalos, armas, panos de ouro, pedras preciosas e ornamentos semelhantes, dignos da sua grandeza. Desejando, pois, oferecer-me à Vossa Magnificência com qualquer prova da minha sujeição, não encontrei, entre todas as minhas bagatelas, nada que estime e ame tanto como o conhecimento das acções das grandes personagens [...], conhecimento em que pensei e reflecti demoradamente e com grande cuidado, a fim de o resumir num pequeno volume que envio à Vossa Magnificência”. O “pequeno volume” refere-se ao livro O Príncipe. E é Maquiavel que escreve. O Príncipe foi o livro mais lido de Maquiavel. Ao mesmo tempo um dos mais polémicos da Filosofia Política. O próprio Napoleão Bonaparte fez vários comentários ao livro. Era a sua obra de cabeceira.
Penso que Machel de Ngoenha poderá ser o livro mais intricado que Severino Ngoenha oferece à sociedade moçambicana, às Vossas Magnificências. No debate filosófico que se segue, sugiro, contrariamente ao que Marechal (Ngoenha) pede, i.e. que cada um de nós ponha na balança da Maat as nossas representações sobre o símbolo Machel; sugiro, pois, que cada um de nós ponha sim as suas próprias acções nessa mesma balança. E que, desta vez, o símbolo epocal seja, sem abandonar a Liberdade, a Justiça Social. E que a juíza seja informada pela ubuntu. Este é uma juíza que tem uma agulha numa mão pronta a coser, na outra mão, um tecido (social) em pedaços. Aliás, é este o ideal da justiça que o próprio Ngoenha propõe algures entre as páginas da sua obra predecessora, Os Tempos da Filosofia (Imprensa Universitária, 2004).


[1] MAÁT é uma deusa egípcia que traz na cabeça uma pluma de avestruz. Ela representa a justiça e a verdade, o equilíbrio, a harmonia do Universo tal como foi criado inicialmente. É também a deusa do senso de realidade. Filha de Rá e de um passarinho que apaixonando-se pela luminosidade e calor do Sol, subiu em sua direção até morrer queimado. No momento da incineração uma pena voou. Era Maát. É a pena usada por Anúbis para pesar o coração daqueles que ingressam no Dwat. Em sociedade, este respeito pelo equilíbrio implica na prática da equidade, verdade, justiça; no respeito às leis e aos indivíduos; e na consciência do facto que o tratamento que se inflige aos outros pode nos ser infligido. É Maát, muito simbolicamente, que se oferece aos deuses nos templos.

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