sábado, 18 de agosto de 2012

Gerir um país empobrecido (1)

Gerir um país empobrecido (1)

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MANIF01.09.2010 Derrube de poste de transporte de energia eléctrica (M. Vilanculos)
 PELO menos uma vez na vida vou ter de discordar de um ditado xangana. De acordo com esse ditado, “ser pobre é feitiço” (usiwana i uloyi). Isto não é verdade. Aliás, não pode ser verdade. Faria mais sentido dizer que “estar empobrecido é como ter sido enfeitiçado”. Continuaria a ferir o meu sentido cognitivo, mas como metáfora estaria mais perto do tipo de palavras que precisamos para descrever a situação do país neste momento. De facto, os últimos distúrbios na sequência do aumento dos preços de produtos alimentares básicos não sugerem outra imagem senão essa de um país que de tão empobrecido que se encontra entrou naquela fase em que tudo quanto faz só parece contribuir para piorar a situação. Está-se mal, como diz a profunda sabedoria quotidiana de Maputo.
Maputo, Terça-Feira, 7 de Setembro de 2010:: Notícias
A pergunta que mais interessa, porém, é a seguinte: está-se mal de quê? A reacção imediata de todo o cidadão sensato é de culpar o Governo pela situação. Na verdade, já que cabe ao Governo garantir a harmonia social quando ela não se verifica, então, é legítimo supor que a causa disso seja o próprio Governo. Aliás, a própria estrutura dos distúrbios – com actos de vandalismo utilizados supostamente para exigir do Governo a melhoria na qualidade de vida – revela que ela parte do pressuposto segundo o qual o culpado seria bem claro. E uma boa parte de comentários populares e eruditos sobre a matéria converge, como não podia deixar de ser, no sentido do reforço desta convicção. Mas até que ponto será o Governo realmente a causa desta ou responsável por esta situação? Ou por outra, por que razão é que a nossa esfera pública se satisfaz tão facilmente com explicações simplistas de fenómenos complexos?
Coloco esta pergunta com muita trepidação porque já posso imaginar o abanar de cabeças geral que vai provocar na maioria dos leitores. Para os leitores que mesmo depois de abanarem a cabeça continuam dispostos a ler o artigo: o cenário político está de tal maneira montado no nosso país que, de facto, o mais natural quando nos encontramos perante uma situação como a do dia 1 de Setembro e subsequentes é na verdade de procurar no que o Governo faz mal – e é muita coisa – a causa dos nossos problemas. Embora esta reacção seja normal e legítima – por alguma razão reclamamos ser uma democracia – ela não só me parece problemática do ponto de vista da análise dos problemas do país como também profundamente contraproducente na procura de um melhor entendimento da condição do país. É uma reacção política por excelência e, em virtude disso, convenhamos, pouco útil. Há dois problemas principais nesta reacção e a sua discussão constitui o principal objectivo desta reflexão.

DAS CAUSAS

Maputo, Terça-Feira, 7 de Setembro de 2010:: Notícias
O primeiro problema diz respeito à imputação causal. Tem sido o bico-de-obra da análise em ciências sociais e até aqui, que eu saiba, ainda não teve resposta satisfatória. O que significa dizer que A é causa de B? O nosso pensamento em matéria de desenvolvimento económico e político está fatalmente amarrado a este esquema causal: se adoptarmos este tipo de política económica, teremos este tipo de resultado económico; se o político respeitar este preceito da democracia, teremos este efeito político na nossa ordem política; se o Governo fizer o seu trabalho bem, teremos um país em harmonia; e por aí fora.
Este esquema causal é filho da crença geral na ideia de que toda a situação tem que ser resultado de qualquer outra coisa. Sim e não. Na verdade, é trivial dizer que toda a situação tem que ter sido resultado de uma combinação de factores antecedentes. O mais importante é dizer de que maneira é que certos factores se combinaram no período antecedente para produzir a situação que temos agora. Salvo em raras excepções – geralmente situações bastante fechadas do estilo de pessoas perderem o emprego por a empresa ter falido; determinar por que uma empresa faliu é muito mais complexo! – é difícil identificar esta combinação de factores com o grau de certeza que nos tem permitido responsabilizar o Governo pelas coisas que andam mal.
A razão dessa dificuldade é simples. O que reforça o esquema causal na análise de fenómenos sociais não é, na verdade, a solidez da combinação de factores antecedentes. É, sim, o argumento circular que consiste na constatação do que está mal agora, constatação essa que serve como prova para concluir que o que foi feito antes foi mau. Na verdade, é neste esquema de pensamento que reside uma boa parte da nossa discussão sobre os distúrbios, daí até a mistura de vários assuntos (ostentação, escolha infeliz de termos para descrever os manifestantes por parte das autoridades, desigualdade social, corrupção, relação entre partido e Estado, despesas do Governo e seus membros, etc.) nessa discussão.
Se o leitor que abanou a cabeça há instantes voltou para ver se continuo a delirar, digo-lhe agora o seguinte: os distúrbios ocorrem num contexto de precariedade generalizada, dentro do qual o “povo” bem como os seus “dirigentes” simplesmente não estão à altura dos desafios. Isto é diferente de dizer que o Governo é o culpado, pois ele não é. A enormidade dos problemas que um país como Moçambique enfrenta é tamanha que nos devemos preparar para mais distúrbios desta natureza, independentemente da qualidade do Governo do dia.
Soa à desculpabilização, mas quanto mais cedo nos habituarmos a essa ideia, melhor será para uma discussão mais racional dos nossos problemas. Naturalmente que há coisas que o Governo pode fazer melhor para evitar que seja sempre o primeiro suspeito. Uma dessas coisas é educar os seus membros a saberem escolher o tom certo e o vocabulário adequado para descrever a situação.
Os distúrbios foram marcados essencialmente por actos de vandalismo; as pessoas que os praticaram podem, com legitimidade, serem descritas como bandidas. Só que não fica bem que um representante do Governo diga isso no calor da situação. É politicamente suicida e imprudente porque atiça mais a fogueira.
A outra coisa que o Governo pode fazer é procurar ter memória institucional e agir de acordo com ela. Assim, a reacção das forças de Lei e Ordem aos distúrbios não parece ter sido à medida da situação. E pior: revela que ninguém aprendeu nada dos últimos distúrbios. Ora, isso pode acontecer, isto é, é perfeitamente normal que as pessoas não aprendam. Mas quando é assim alguém tem que cobrar, responsabilizando quem devia ter aprendido. Mais do que a escolha infeliz de palavras, o que torna problemática a continuidade do ministro do Interior no Governo é o facto de a sua instituição não ter, aparentemente, aprendido dos distúrbios passados.
Naturalmente que é mais fácil dizer o que estou a escrever agora do que fazer. Isso pressupõe que se passe a dar mais importância à responsabilização individual, mas para isso ser possível seria necessário que todo aquele que é chamado a assumir um cargo ministerial desenvolvesse o hábito de formular os seus objectivos, definir o que precisa para os realizar e, sobretudo, ter a coragem de recusar se não achar as condições reunidas para desempenhar o seu papel.
Só assim é que alguém pode se sentir responsável por aquilo que corre mal dentro do seu pelouro. Quem apenas vai cumprir uma missão, como é o caso de muitos no nosso sistema político, nunca, suponho, se sentirá responsável por nada e, pior ainda, nunca terá a rectitude de assumir consequências individuais.
Há quem se aproveitou dos protestos para o saque (J. Capela)
Há quem se aproveitou dos protestos para o saque (J. Capela)

DA EXCEPCIONALIDADE

Maputo, Terça-Feira, 7 de Setembro de 2010:: Notícias
O segundo problema na nossa reacção tem a ver com a excepcionalização da nossa experiência. Este é um problema bicudo. Quando falamos destes distúrbios temos a tendência de os descrever como se fossem coisas que só podem acontecer no nosso país (por causa do tipo de governantes que temos). Faz bem pensar assim, mas nem sempre é útil. Este raciocínio é, na verdade, uma espécie de afluente do raciocínio causal. Mas aqui também devemos ter cuidado.
Há duas fontes de erro neste raciocínio. A primeira consiste em comparar o nosso país com outros que se encontram numa outra fase de desenvolvimento. Não é que o exercício comparativo não seja legítimo, mas precisa de ser melhor calibrado. O presente de Moçambique, do ponto de vista económico, é o passado europeu, pelo que a comparação, para ser útil, devia ter esse aspecto em consideração.
E se dermos uma vista de olhos ao passado europeu veremos que ele também foi marcado por grandes convulsões sociais que só muito recentemente – sobretudo nos excepcionais trinta anos após a Segunda Guerra Europeia – atenuaram. Para se ultrapassarem essas convulsões foram necessários anos e décadas de trabalho político e económico que, em muitos casos, só por acidente começou a dar frutos.
Enquanto isso, o Estado teve que reprimir duramente, apesar de o “povo” ter razões legítimas para entrar em rebelião. Um aspecto caricato de toda a imputação de culpa ao Governo moçambicano é a situação impossível em que ele é colocado: se não reage com força às manifestações vai ser maldito; se reage, também será maldito. Aqui é fácil ver o problema. A forma como descrevemos o problema é ideológica no pior sentido desse termo, pois essa descrição pretende-se imune de todo o tipo de interpelação. Qualquer que seja a perspectiva que adoptamos a conclusão tem, necessariamente, ser de que o Governo é mau. Isto parece-me profundamente insatisfatório, tanto mais que começa a alimentar, por mais estranho que possa parecer, tendências anti-democráticas contra as quais nos devíamos precaver.
Na verdade, é em momentos assim que cresce no seio da sociedade a ideia de que o processo democrático não serve para nada e, no seio da classe política ou entre militares que pensam que percebem de política, a ideia de que é preciso salvar a nação. Embora o ambiente político internacional que se vive agora não seja favorável a golpes de Estado, os militares que praticam esse tipo de acções são notórios na sua incapacidade de avaliar esse tipo de ambientes.
A segunda fonte de erro na ideia da excepcionalidade é a grande confusão que fazemos entre arrogância da Frelimo e as características particulares de um sistema político democrático dominado por um partido. Muitos problemas que apontamos na forma como o nosso Governo funciona não resultam daquilo que muitos de nós consideramos, muitas vezes com fortes razões, como sendo a arrogância do partido no poder.
Esses problemas – a tendência de não ser sensível às opiniões de outros, não ser conciliatório, concentração obsessiva na acumulação absoluta de poder, identificação da crítica como hostilidade ao poder, expectativa de lealdade absoluta do funcionário público em relação ao partido no poder, etc. – são uma manifestação dos problemas que decorrem do facto de uma formação política controlar desmesuradamente o sistema político.
Em todo o lado onde isto se verificou – por exemplo, nos anos de dominação social-democrata nos países escandinavos, conservadora de Margaret Thatcher e trabalhista de Tony Blair na Grã-Bretanha, etc. – estas tendências foram evidentes. Isto não torna essas práticas legítimas, como é óbvio, mas coloca pelo menos sobre quem quer analisar os nossos problemas políticos a responsabilidade de contextualizar melhor a sua crítica.
Aquando da primeira vitória de Armando Guebuza escrevi uma série de textos publicados neste mesmo jornal com alguns recados. Um deles era sobre a necessidade de reforçar a oposição. A sugestão não era de que a Frelimo perdesse voluntariamente alguns lugares, mas que fizesse tudo para que cada vez mais problemas do país encontrassem expressão política institucionalizada.
  • E. Macamo - Sociólogo, nosso colaborador

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