terça-feira, 7 de agosto de 2012

A “Tragédia dos Comuns” na voz de um zambeziano

Grande entrevista com o professor António Francisco
Este regime absolutista convida ao golpe

“Em Maputo, a voz popular diz que a Assembleia da República é a “escolinha do barulho”. Em Quelimane, fiquei com a sensação que as universidades são verdadeiras escolinhas do silêncio, pois o debate académico e estudantil é inexistente. Isto é pena.”
No nosso caso, podemos pensar que um dia seremos surpreendidos por uma insubordinação por via das Forças Armadas? – “E porque não? Um regime político tão centralizado, centralizador e dirigista; este presidencialismo absolutista, a longo prazo convida a golpes ou mudanças radicais, como foi a independência. Para se evitar tais mudanças precisamos de mudar o sistema político, principalmente o sistema de Governo, sistema eleitoral, criar um regime de efectiva independência de poderes.”
“Nós hoje só fazemos eleições para garantir a ajuda dos doadores e para reconhecimento de Moçambique como uma caricatura de democracia representativa.”
“A democracia funciona de forma inversamente proporcional à evolução do preço internacional do petróleo. Quanto mais cresce o preço do petróleo, mais reduz a democracia.”
“Se aqui o partido Frelimo conseguir dispensar os doadores, não só do Orçamento do Estado mas do financiamento aos principais sectores sociais, mais arrogante ficará. Por enquanto ainda têm que agir com calma, mas também não precisam de muita, pois os doadores ajudam no fingimento da alegada democratização e à descentralização. Acaba-se por ficar na intolerância, e na subjugação da cidadania a um partido.”
“Num ambiente em que apenas uma elite com poder político pode aspirar a participar no banquete do ambiente de negócios, eventualmente surgirão processos de descontentamento e insubordinação.”
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Maputo (Canalmoz) – O professor António Francisco é um dos cidadãos moçambicanos que nasceu (1958) no centro-norte do País e acabou por se radicar em Maputo. Abandonou a sua terra, Quelimane, por uma série de razões. Nos últimos 10 anos não visitou a sua cidade-berço. Esteve lá há dias. Isso serviu de mote para esta entrevista que acedeu conceder ao Canal de Moçambique/Canalmoz.
António Alberto da Silva Francisco é Director de Investigação do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), Professor Associado na Faculdade de Economia da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Doutorado e Mestre em Demografia pela Australian National University (ANU) e Licenciado em Economia pela UEM (Universidade Eduardo Mondlane).
Leia na íntegra a entrevista, em jeito de pergunta-resposta:
Canal de Moçambique/Canalmoz (Canal): Nos meses passados o Professor António Francisco tem chamado à atenção para um assunto antigo mas poucos investigadores se interessam por ele, no caso da sociedade moçambicana. Fê-lo em relação à Cidade de Maputo; depois em Quelimane, em Junho passado; e ainda em Nampula. Um tema que diz afectar todo o País, com um nome sonante, mas poucos parecem conhecer o seu real significado. Ou seja, chama-lhe “Tragédia dos comuns”. O que entende por “tragédia dos comuns” e qual o seu significado em Moçambique?
António Francisco (AF) – Tragédia dos comuns é, sem dúvida, um conceito controverso, como aliás qualquer conceito que lida e mexe com os comportamentos, relações sociais, preconceitos e hábitos individuais. De forma simples, tragédia dos comuns é uma espécie de armadilha social, cultural e sobretudo económica, em que as pessoas extraem o maior benefício possível de um bem comum, sem se importarem com quanto contribuem para a sua produção e conservação. Uma armadilha social decorrente do conflito entre os interesses individuais concentrados no uso de recursos finitos considerados como bens comuns, bens públicos de todos em geral e de ninguém em particular.
Numa sociedade onde as pessoas são incentivadas a usar os recursos de forma livre e desregulada acabam por utilizar tais recursos de forma abusiva e exagerada. Um exemplo comum e conhecido do tempo em que os imóveis de rendimento foram nacionalizados e proibidos, em que tínhamos a APIE (Administração do Parque Imobiliário do Estado), os serviços de elevadores, de água e lâmpadas nos espaços comuns foram completamente degradados. Quem se importava com as torneiras abertas? Quanto tempo durava uma lâmpada de entrada; o que se passou com os elevadores? Luzes sempre acesas. Ninguém queria saber. Por que economizar, se o Estado se assumiu como único dono e responsável pelo bem comum? Por que ser poupado e ter cuidado com as coisas se o vizinho também não se importava em usar as coisas sem qualquer controle?
Canal: Mas isso acontece só nas cidades ou afecta todo o País? Por que destacou recentemente a Cidade de Maputo, quando surgiu a controvérsia entre a edilidade do Município e os informais da Cidade de Maputo, no início do corrente ano? Mais recentemente foi a Quelimane e fez uma palestra muito provocativa: “Como libertar Quelimane da tragédia dos comuns?” Isto é um problema principalmente urbano, ou é um problema que afecta também o meio rural, por exemplo, os recursos naturais como se tem falado tanto?
AF – Vamos clarificar bem este assunto. O conteúdo da tragédia dos comuns não se define em função da classificação urbano–rural. Eu levantei e escrevi sobre o assunto, em Fevereiro passado, por causa do conflito entre a edilidade e os informais na Cidade de Maputo, por o caso me ter despertado a atenção para o fenómeno. Primeiro que tudo, a tragédia dos comuns é uma relação social, uma armadilha social criada por instituições ou regras de jogo na sociedade, em que as pessoas são incentivadas a tirarem o maior benefício do recurso com o menor custo possível.
O termo é muito antigo. Remonta ao tempo da Grécia Antiga, a Aristóteles; mas foi o biólogo Garret Hardin que popularizou a ideia de “tragédia dos comuns” num pequeno mas seminal artigo publicado em 1968 na revista científica Science. Tem sido dos artigos mais citados e usado na investigação científica, quer a favor quer contra a ideia. Hardin chamou a atenção, no referido artigo, que existem certos problemas na sociedade que não podem ser resolvidos por via de meios técnicos, mas mudando as relações sociais, os valores humanos, as ideias de moralidade e as percepções de responsabilidade pessoal. Exemplificando um tipo de problema sem solução meramente técnica, Hardin destacou a relação entre o crescimento da população humana e a capacidade de utilização dos recursos, num planeta finito.
Canal: O que achou de Quelimane, após ter ficado mais de dez anos sem lá voltar?
AF – Quelimane retrocedeu dramaticamente, retrocedeu proporcionalmente ao retrocesso da economia zambeziana. É uma cidade moribunda que se recusa a desfalecer e morrer. Um bom retrato de Quelimane pode ser lido no livro intitulado, “A Cidade Subterrânea”, do Élio Mudender. Ele chamou-lhe romance, mas para mim é mais um documentário da tragédia quelimanense. Enquanto o autor descreve a cidade mergulhada num pântano de miséria e pobreza, corrupção, inveja, perseguições e vinganças, eu preocupo-me em entender a malha da tal armadilha social.
Canal: Sendo professor universitário há cerca de trinta anos, o que achou da comunidade universitária, sabendo que Quelimane, em poucos anos ficou com cinco ou seis universidades?
AF – Pois é. Cinco universidades e não foi possível encontrar uma única aberta e disponível para acolher um dos debates que foram realizados no Salão Nobre do Município de Quelimane. Pelo que parece, tinham interrompido as aulas para a realização de testes e exames. É um sistema tipo escola secundária. Mas mais curioso e estranho foi não existir um grupo, ou associação estudantil, empenhados em promover debates de interesse actual. Quem anda a fazê-lo é o Presidente do Município que tem cultura e sensibilidade académica.
Ainda houve um professor que da Universidade Politécnica (????) enviou uma ou duas turmas para a segunda palestra que fiz. Nessa altura partilhei com eles a sensação que tive. Em Maputo, a voz popular diz que a Assembleia da República é a “escolinha do barulho”. Em Quelimane, fiquei com a sensação que as universidades são verdadeiras escolinhas do silêncio, pois o debate académico e estudantil é inexistente. Isto é pena. Quando eu andava na escola secundária, em 1973 e 1974, ainda antes da queda do regime de Caetano em Portugal, a 25 de Abril; um núcleo de estudantes secundários, do liceu e da escola técnica, tinham contacto com estudantes universitários de Lourenço Marques e trocavam livros entre si. Foi assim que na altura li o meu primeiro livro proibido: “A Origem da Família, da Propriedade e do Estado”, de Friedrich Engels. E agora, quando não existe censura literária, temos o problema dos estudantes e jovens lerem muito pouco os clássicos da literatura e da política.
De qualquer maneira, do lado positivo, é interessante hoje irmos a Quelimane e termos um Presidente do Município a dinamizar o debate e reflexão pública. É o que está a fazer o Presidente Municipal Manuel de Araújo... No dia 21 de Agosto Quelimane vai comemorar 70 anos como cidade. Coincidentemente, no dia que fiz a primeira palestra, faltavam 70 dias para o dia do aniversário. Manuel de Araújo anunciou publicamente, nesse dia, que aquela palestra era a primeira de uma série de outras palestras sob o lema “Repensar Quelimane, Repensar a Zambézia”. Foi nessa altura que apresentei o tema: “Como livrar Quelimane da Tragédia dos Comuns”.
Depois fiz uma outra sobre as oportunidades e constrangimentos da economia formal na Zambézia. Entretanto, Manuel de Araújo quer continuar com os debates; ele tem estado a convidar zambezianos, e não só; também outras pessoas que estejam interessadas em apoiar o processo de mudança que está a acontecer em Quelimane…
Canal: Em Quelimane ou no País?
AF - Sim, em Quelimane. Aquela cidade está a viver uma experiência única, na sua história. Como é sabido, a partir de 7 de Dezembro último surgiu uma mudança de liderança política nunca antes observada em Quelimane. Apesar de ser uma das únicas, ou a única autarquia na Província da Zambézia com uma alternância de liderança política, nas recentes eleições municipais, foi a primeira vez que surgiu uma mudança realmente partidária. Quelimane começou a redefinir-se e a repensar o seu lugar e papel como parte de uma das principais províncias moçambicanas, em termos populacionais e não só.
Canal: A Beira também deveria fazer isso?
AF – Sim, a Beira devia fazer. Só que na Beira a liderança política alternativa ao partido no poder no resto do País, a Frelimo, não mostra substância e vigor intelectual. O benefício e diferença em Quelimane é que surgiu um Presidente que tem uma trajectória académica e intelectual, a qual lhe permitiu adquirir uma outra sensibilidade.
Canal – Isso vai permitir que Manuel de Araújo consiga gerir o município? Não irá ele perder-se nesse tipo de iniciativas culturais e intelectuais? Sabendo que ele só tem um mandato, muito curto, para já – acha que ele vai conseguir manter-se depois de 2013?
AF – Manuel de Araújo tem um mandato curto, sim. Ele não pode fazer obras de relevo, porque não terá tempo; mas pode fazer a diferença com este tipo de iniciativas, e muitas outras, práticas e com impacto imediato na vida das pessoas. Parte dessas iniciativas não custa dinheiro; apenas custa decisão e visão política. Ele pode resolver o contencioso que enfrenta nos mercados dos vendedores, o que estou convencido que irá resolver. É um problema ridículo herdado da anterior edilidade. Pelo que percebi o anterior edil, Pio Matos, concentrou os vendedores na antiga feira, a “FAE”, um lugar completamente remoto e fora de mão, em termos de mercado central e proximidade dos clientes. Claro que, por causa disso, tais vendedores tornaram-se apoiantes da mudança para Manuel de Araújo, porque viram nele a esperança de entendimento das suas preocupações. Depois da vitória de Araújo alguns vendedores abandonaram o tal recinto e foram para as ruas. Entretanto as pessoas começam a ficar incomodadas com essa venda desordenada na rua, o que também é legítimo.
Manuel de Araújo tem aqui uma oportunidade de gerir uma das muitas pequenas armadilhas sociais da tragédia dos comuns. A falta de regras claras sobre até onde podem ir e onde acabam os direitos dos vendedores informais; onde começam e acabam os direitos dos vendedores formais; e ainda como respeitar os direitos dos consumidores. Tudo isto necessita clareza de regras de funcionamento e relacionamento entre as pessoas, colocando os vendedores num espaço mais acessível aos clientes, resolvendo o assunto por vias económicas em vez de administrativas ou policiais. Aquilo é um problema de economia dos vendedores a retalho, que vende roupa, mas um problema que irá aumentar porque as pessoas aumentam na cidade e as oportunidades de produzir algo que gere não aumenta ao mesmo ritmo.
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Sobre a toponímia de Quelimane
Canal – Sabemos que também questionou os nomes das ruas de Quelimane e propôs uma mudança fundamental na toponímia que rompa com o desprezo pelos próprios zambezianos…
AF – Sim, a questão da toponímia é um outro exemplo simples, mas simbolicamente importante para a auto-estima e a valorização real e não apenas demagógica das personalidades originárias da Zambézia.
Sim, provoquei esse assunto e notei que criou logo reacção. Quelimane vai comemorar 70 anos do seu aniversário como cidade. Perguntei o que estão a fazer para se prepararem para esse aniversário? Será que pensam apenas ir depositar uma coroa de flores na Praça dos Heróis? E que heróis são recordados na toponímia de Quelimane? Karl Marx, Lenine, Engels, Mao Tsé Tung, Samuel Magaia… não há um quelimanense, um único zambeziano, que seja homenageado com uma única rua. Isto é simplesmente ridículo, para não dizer flagrantemente humilhante.
Canal: Filipe Samuel Magaia é da Zambézia. Nasceu em Mocuba…
AF – Magaia? Pois, então, aí temos uma excepção, talvez a única, a confirmar a regra. Uma excepção casual, pois sabemos que o nome de Magaia foi posto numa rua em Quelimane como deve ter sido posto em ruas e escolas de muitas outras cidades. Ele faz parte daqueles pouquíssimos militantes da FRELIMO, como Mondlane e Josina Machel, que foram usados para dar nome em todo o sítio. Como se fossem os únicos heróis merecedores de reconhecimento. Por que é que Bonifácio Gruveta, líder da Frelimo na luta pela independência e primeiro Governador da Província da Zambézia, não tem uma rua? O Che Guevara fez mais pela independência de Moçambique do que Bonifácio Gruveta ou Joaquim Maquival?
Canal – Mas por lei não compete ao Município, nem sequer à Assembleia da cidade, mudar a toponímia local.
AF – A quem compete?
Canal – Quando foi a questão na Beira da Praça André Massangaice, o partido Frelimo foi apanhado desprevenido e então alterou a lei para que tal competência fique apenas da Administração Estatal.
AF – Em que Administração Estatal? Que Administração Estatal é essa? É a Administração Estatal do que considero ser o “País do partido único”. Outra aberração que se prolonga para manter o poder de um grupo… Por quanto tempo?
Canal – Qual aberração?
AF – Setenta por cento do País e dos cidadãos em idade de votar continuam privados do direito de elegerem os seus dirigentes locais, numa clara violação dos direitos de cidadania reconhecidos pela Constituição da República. Inventaram essa táctica do gradualismo, em que se aumenta uma autarquia, não se sabe de quando em quando. Na última década foi uma por ano. Hoje temos 43 autarquias, com menos de 30% dos cidadãos a exercerem o direito de escolha dos seus dirigentes a nível local. O resto das administrações locais continua no regime do partido único, subordinadas à Administração Estatal. E depois falamos de descentralização na Administração Pública!?...
Canal – Mas isso é igual à história da Comissão Nacional de Eleições – há eleições, porquê? Apenas se fazem eleições por imposição ou a imitar o mundo dito civilizado? Por que fazemos eleições? Isto é uma democracia?
AF – As eleições são como que uma auditoria da sociedade à governação, para permitir aos cidadãos fazer uma avaliação do desempenho da governação e gestão pública e decidir se vale a pena manter ou não a mesma equipa.
Canal – Pressupõe-se que a vontade do eleitorado é manifestada para um período de cinco anos. Depois desse período pressupõe-se que se alterou a soma das vontades de cada eleitor. Mas a Comissão Nacional de Eleições continua a refletir a proporcionalidade votada cinco anos atrás, na base da votação do plebiscito anterior e esta provoca contenciosos eleitorais para depois votar internamente e usando da maioria partidária no seu seio ditar ela própria o resultado…
AF – Sim, isso é um detalhe importante. Mas para mim é um detalhe, quando comparado com a questão que menciono acima e debati em Quelimane. O problema de termos no País menos de 30% da população em idade de votar a exercer seu direito constitucional de escolha dos seus dirigentes locais. Os restantes cidadãos, cerca de 70%, continuam a não votar a nível autárquico.
Cidadão de Primeira e Cidadão de Segunda Classe
Canal – Porque é que não votam?
AF – Não votam, porque não podem. Por impedimento administrativo, alegando que irão fazê-lo gradualmente, isto é, irão aumentar o número de autarquias. Fazer uma autarquia por ano, significa que só daqui a 120 anos é que vamos ter autarquias em todo o País em que os cidadãos todos terão direito a votar. E seriam 120 anos se as autarquias coincidissem com os actuais 128 distritos rurais. Quando foi para a independência de Moçambique, Salazar terá dito que os moçambicanos precisavam de mais 100 anos para serem preparados para a Independência. Esses mesmos que agora impõem o gradualismo autárquico disseram que não. Disseram que era inadmissível e inadiável, ao ponto de iniciarem uma luta armada. E agora? Não se importam de criar “cidadãos de segunda” classe política. São pelo menos 70% de moçambicanos que, contrariamente ao que estipula a Constituição da República, continuam a não ter direito de eleger os seus representantes a nível local. Continuam subordinados à Administração do partido único; subordinados à Administração Estatal do partido Frelimo com a direcção instalada em Maputo.
Assim, não admira como tem sido noticiado nos jornais que tirem as bandeiras do MDM e da Renamo e coloquem apenas da Frelimo.
Canal – Estão a tirar apenas dos dois. Estão a tirar em todos os sítios…
AF – Eu acho muito bem que tirem, porque isso é o que os partidos da oposição Renamo e MDM merecem, por causa do seu silêncio cúmplice com a discriminação política contra os rurais que ainda não lhes viram reconhecidos direitos autárquicos previstos na Constituição. E como nisso a Frelimo até tem tido apoio financeiro dos doadores, entretanto a falsa descentralização continua. Quem tem subsidiado, sem grande nem pequeno interesse em exigir uma harmonização da administração pública local, são os próprios doadores. Como é que podemos ter um ambiente de concorrência saudável, um ambiente positivo de alternância na administração pública como consequência da alternância política, quando mais de 70% da população está impedida de exercer essa concorrência e alternância, na sua vida quotidiana, a nível local?
A gente aceita como normal que aleguem que isso acontece por razões financeiras, mas sabemos que tal justificação é puro cinismo. Isto é inaceitável! Ninguém discute isso embora seja em minha opinião mais importante do que a tal Comissão Nacional de Eleições essa tal Comissão que funciona como mais um instrumento de manipulação da vontade do eleitorado e que ninguém sabe quando acabará, para que as suas funções sejam integradas na Administração Estatal, como acontece num País de democracia normal. Aqui, os partidos preocupam-se mais em ocupar a comissão de eleições para darem emprego a uns tantos dos seus membros, mas todos eles, pura e simplesmente negligenciam e marimbam-se para os direitos fundamentais dos cidadãos. Um direito básico como este de votar a nível local ainda é exercido por menos de 30% dos moçambicanos em idade de votar em todo o País. Temos uma democracia só para urbanos.
Canal – Então, porque é que se fazem eleições? Não é para permitir dar oportunidade à vontade popular?
AF – É verdade, mas estamos a entrar num outro pressuposto das eleições em Moçambique. Nós hoje só fazemos eleições para garantir a ajuda dos doadores e para reconhecimento de Moçambique como uma caricatura de democracia representativa.
Canal – Quer dizer que quando começarmos a explorar os recursos minerais, não haverá eleições...
AF – Quando começar, ou seja, agora, ainda haverá, porque os proveitos financeiros dessa exploração ainda não começaram a ser colectados. Veja o que aconteceu em Angola. O actual Presidente, Eduardo dos Santos, por quem foi eleito? E nas próximas eleições vai ser eleito directamente pelo povo? Alguma vez o Presidente foi eleito?
Canal – Nunca!...
AF – E porquê? Porque, diferentemente do que se passou em Moçambique, o MPLA controlou o acesso ao principal recurso financeiro. Quando o preço internacional do petróleo está alto, em Angola e outros Países em que os governantes controlam as receitas petrolíferas, eles fazem o que querem para manter o seu poder.
Quando o preço do petróleo está alto não há democracia nesses Países com instituições políticas e económicas predadoras e extractivas. A democracia funciona de forma inversamente proporcional à evolução do preço internacional do petróleo. Quanto mais cresce o preço do petróleo, mais reduz a democracia em Países como Angola ou Nigéria, onde as sociedades são geridas por instituições predadoras e não por instituições de direitos humanos e de propriedade privada inclusivas.
Portanto, se aqui o partido Frelimo conseguir dispensar os doadores, não só do Orçamento do Estado mas do financiamento aos principais sectores sociais, mais arrogante ficará. Por enquanto ainda têm que agir com calma, mas também não precisam de muita, pois os doadores ajudam no fingimento da alegada democratização e à descentralização. Acaba-se por ficar na intolerância, e na subjugação da cidadania a um partido.
Um Estado que permite que o seu Executivo e a administração pública centralizem mais do que descentralizam, quer os recursos quer o poder de decisão, faz mais contra-democracia do que democratização. Isto tem sido feito regularmente ao longo das duas últimas décadas. E depois vocês, os jornalistas, e são muito poucos, queixam-se da Comissão Eleitoral. A Comissão Nacional de Eleições está a fazer o jogo da neutralização da democratização nos 30% do País onde se diz existir democracia. Por isso, aí o partido que controla o Estado investe no jogo de secretaria; nas jogadas de antecipação, para se controlar qualquer surpresa que o eleitorado lhe reserve nas urnas. Fazemos eleições relativamente pacíficas, mas sabemos pelas eleições gerais passadas que em vários casos os resultados foram fabricados. Lembremo-nos do que aconteceu com o MDM.
Canal – O que é que aconteceu?
AF – Então, como é que o MDM entrou no Parlamento? Por uma via humilhante, para o partido maioritário, mas às vezes os doadores obrigam o partido Frelimo a comer esses sapos. Porque é que os doadores obrigaram a Frelimo a admitir o MDM no Parlamento? Foram os doadores que impuseram que o MDM tivesse bancada no parlamento. O regimento foi alterado. Perante as aberrantes falcatruas nas eleições, os doadores consideraram as eleições justas e boas, mas depois obrigaram a mudar no Regimento do Parlamento o que fosse necessário para garantir que o MDM criasse uma bancada. Isto é patético… Uma caricatura de democracia.
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Golpe de Estado
Canal – Mas qual seria a alternativa? Fazer um golpe de Estado como na Guiné-Bissau tem acontecido repetida e sucessivamente?
AF – Mas o golpe de Estado na Guiné-Bissau é o golpe do Estado informal, o qual está a mostrar-se muito mais forte do que o Estado formal. O caso da Guiné-Bissau é um exemplo avançado de Estado Falhado. Como tenho defendido em vários artigos, Moçambique continua apenas um Estado Falido, cronicamente falido mas não falhado, porque o partido Frelimo tem sabido evitar isso no momento certo. Quando a corda está para partir e tudo ruir a Frelimo recua e muda o que for necessário para continuar a viver à custa da ajuda e da comunidade internacional.
Canal – Mas para todos os efeitos, na Guiné-Bissau, foram as Forças Armadas que fizeram o golpe. No processo de afirmação da ala das Forças Armadas que se insubordinou alguns apareceram em público a dizer que no tempo de Salazar também se faziam eleições…
AF – E com isso já se sentem legitimados, não é? – Bonito! O Hittler também ganhou o poder por via do processo eleitoral…
Canal: O que é que isto quer dizer? No nosso caso, podemos pensar que um dia seremos surpreendidos por uma insubordinação por via das Forças Armadas?
AF – E porque não? Um regime político tão centralizado, centralizador e dirigista; este presidencialismo absolutista, a longo prazo convida a golpes ou mudanças radicais, como foi a independência. Para se evitar tais mudanças precisamos de mudar o sistema político, principalmente o sistema de Governo, sistema eleitoral, criar um regime de efectiva independência de poderes.
Nestas condições o cenário extremo torna-se possível quando o ambiente de negócios começa a ficar insuportável para um grupo de interesses políticos marginalizado. Esta coisa do ambiente de negócios é um outro assunto que deveria merecer uma reflexão mais séria e crítica. Esse foi o outro tema que debati, na segunda palestra que fiz em Quelimane.
O ambiente de negócios
Canal – Mas qual é o problema em se pretender melhorar o ambiente de negócios?
AF – Não há problema nenhum, a não ser que é um grande engano falar-se de melhoria do ambiente de negócios, num sentido abrangente e inclusivo, quando o ambiente de mercado é muito mau. O problema está na inversão dos termos.
Neste momento a moda nos discursos dos governantes e dos empresários, é melhorar o ambiente de negócios. Você pode criar um bom ambiente de negócios, como aconteceu em Angola, nos momentos mais intensos de guerra, em que certos negócios prosperam sem problemas. Acredito que o ambiente do negócio do petróleo, com guerra ou sem guerra, nunca tenha sido nada mau. Enquanto for extremamente lucrativo, ao ponto de pagar folgadamente a segurança militar de que o regime precisa, para se manter. Durante a guerra em Angola, o MPLA tinha um bom ambiente de negócio petrolífero, enquanto a UNITA tinha um bom ambiente de negócio diamantífero. A UNITA acabou por se desmantelar quando surge o processos dos diamantes de sangue.
Também o Zimbabwe e o Congo. No Zimbabwe, apesar de ter tido o pior nível de inflação na história da humanidade, os poucos negócios altamente lucrativos de certas minas continuaram a ter um bom ambiente de negócios.
Se a opção é criar um bom ambiente apenas para aqueles negócios que se conseguem proteger do mau ambiente de mercado que os rodeia, enquanto forem suficientemente lucrativos, até para alimentar um exército ou segurança privada de auto-defesa, o que importa o resto?
Só que, depois é preciso esperar pelas consequências. Num ambiente em que apenas alguns negócios conseguem alta lucratividade, enquanto a maioria das pessoas ficam a sobreviver na estagnação; num ambiente em que apenas uma elite com poder político pode aspirar a participar no banquete do ambiente de negócios, eventualmente surgirão processos de descontentamento e insubordinação.
Tivemos esses exemplos aqui em Maputo: as revoltas de Fevereiro 2008 e Setembro de 2010. E se quiser encontrar um chamado bom “ambiente de negócios”, no sentido do discurso em moda, Maputo é um dos melhores ambientes em Moçambique. Depende da perspectiva, ou do lado em que se encontra no negócio – no informal legítimo? No formal? No informal ilegítimo?
Neste momento, a Zambézia produz uma riqueza que é igual ou inferior àquilo que os 19 doadores (ainda!) doam para o Orçamento do Estado. Isto mostra a miséria absoluta em que assenta o Estado moçambicano. A guerra acabou há mais de 20 anos atrás, mas uma província com mais de quatro milhões de habitantes contribui para a riqueza nacional, representada pelo Produto Interno Bruto (PIB), o correspondente aos cerca 600 a 700 milhões de dólares americanos de duas dúzias de contribuintes doadores para o Orçamento do Estado.
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O norte, o centro e o sul
Era útil no tempo colonial ter a capital muito a sul colada à África do Sul, mas agora é desastroso continuar a ter a capital longe dos potenciais centros produtivos, longe das zonas mais produtivas do País.
Canal: Porque é que o centro e o norte do País não são desenvolvidos? Porque é que no sul, quando há uma catástrofe rebenta uma estrada vital para uma determinada região, como aconteceu recentemente em Xinavane em que nas últimas enxurradas a estrada cortou-se, aqui é logo reparada dias depois, mas há zonas do País em que as mesmas coisas acontecem e o Governo faz de conta que não é nada. O que é que isto quer dizer?
AF – Mas isso não é um problema do sul contra o norte. É mais um problema de privilégio da elite da capital do País. Tanto no tempo colonial como depois da independência, o poder político concentrado em Lourenço Marques, ou em Maputo, agora, sempre se defendeu de forma especial. Sempre se protegeu de forma muito especial. Foi por isso que tivemos a “operação produção” na década de 80. Para desafogar os urbanos que estavam a ficar atulhados de gente. Como agora…
Porém, temos zonas do sul que são tão miseráveis ou piores do que as zonas do norte. Eu não punha o problema como dicotomia entre o norte e o sul. Ponho em termos de capital política, principalmente porque é na capital que se concentra a classe de interesses que controla o País. E essa classe política não vai ter vida fácil, porque está concentrada nesta ponta do País, o que corresponde a outra aberração do ponto de vista de administração pública eficiente e eficaz. Era útil no tempo colonial ter a capital muito a sul colada à África do Sul, mas agora é desastroso continuar a ter a capital longe dos potenciais centros produtivos, longe das zonas mais produtivas do País.
Canal – Moçambique já viveu com a capital isolada do resto do País, quando não se poderia circular devido à guerra civil e às guerras anteriores…
AF – Já viveu sim, por isso aliou-se ao ocidente para evitar o Estado falhado. E conseguiu. Conseguiu uma coisa maravilhosa, até certo ponto, para os políticos. É minimizarem a dependência do eleitorado. Veja que em Moçambique os partidos políticos não precisam de mostrar uma estratégia de fiscalidade, de governação e gestão racional dos recursos fornecidos pela sociedade. Como vão buscar a maior parte dos recursos no exterior, no final os políticos ainda acham que o eleitorado deve ficar agradecido ao facto de colocarem pressão sobre ele para se legitimarem a ir procurar alternativas de doadores internacionais.
Canal – Recentemente têm aumentado as críticas às grandes multinacionais porque estão a vir todas em fila a tentar explorar os recursos naturais de Moçambique. O que é que acha dessa crítica?
AF – Depende do tipo de crítica. Uma parte continua a ser puro esquerdismo. Um esquerdismo que já devia estar na prateleira da história.
Canal – Como por exemplo?
AF – Exemplo? Tivemos um recente. Um sociólogo português, o Professor Boaventura de Sousa Santos comentou durante a sua visita a Moçambique que as grandes multinacionais, como a Vale do Rio Doce ou a Rio Tinto celebram contratos que lhes permite o saque das riquezas moçambicanas com o mínimo de contribuições. Em 2010, disse algures que a contribuição foi de 0,04%, o que representa uma violação impune dos direitos humanos das populações onde existem recursos. Direitos humanos? Mas quais direitos humanos? A violação principal dos direitos humanos prolonga-se desde que o Estado usurpou e se tornou o único e exclusivo monopolista da terra e de todos os outros recursos naturais. E sobre isso, nunca ouvi o Professor Sousa Santos a criticar. Agora, fala de desrespeito dos lugares sagrados, dos cemitérios e dos ecossistemas. Mas se você acha que aquela terra é propriedade do Estado, em vez dos seus legítimos ocupantes, por que protesta que o Estado cobre o que cobra? Se você concorda que o texto constitucional declara que a terra não tem valor económico, porque é isso que significa a decisão de proibir a venda, hipoteca, penhora e qualquer forma de alienação comercial da terra, qual o sentido de vir com discursos de eficiência e eficácia de mercado?
Canal – Mas essa é também a crítica do IESE. Ou não é?
AF – Crítica do IESE, salvo seja. Nós no IESE temos, sim, alguns colegas que têm mostrado com a sua investigação as inconsistências da política fiscal, numa certa perspectiva de visão de Estado. A proposta pela renegociação dos contratos com vista a garantir uma maior contribuição das receitas das empresas têm a sua validade, mas também a sua limitação. Ao reduzir a questão da gestão dos recursos naturais a uma questão técnica, ou então a uma mera manipulação das multinacionais, não nos irá levar longe. O problema está nas instituições políticas e económicas que foram criadas na sociedade. Se são instituições predadoras e extractivas, logicamente que temos uma economia extractiva. Mas essa economia extractiva, em vez de inclusiva, tem muito a ver com a questão inicial da tragédia dos comuns. Tem a ver com a questão do papel dos direitos de propriedade na gestão dos recursos.
Canal – Então, quer dizer que o IESE não segue uma visão comum de política?
AF – Nem os partidos seguem, porque é que um Instituto de pesquisa científica devia seguir? A grande aposta e mérito do IESE é ser pluralista nas abordagens. Não é um Instituto monolítico. Longe disso. E se alguma vez fosse, ou tentasse ser, não sobreviveria muito tempo. Eu pelo menos não estaria lá. E outros também…
Ou a gente aprende a ser plural, tolerante, e diversificado nas ideias, ou então é melhor irmos para a Universidade do Partido. E por falar disso é que penso que os investigadores do IESE estão claros sobre o rumo a tomar. Isto significa que podemos ter resultados que sejam interpretados de forma diferente, nuns casos complementarmente diferentes, noutros divergentemente diferentes.
Quem beneficia? Quem paga?
Canal – Só mais duas pequenas questões. O que é que tudo isto tem a ver com a questão inicial sobre a tragédia dos comuns?
AF – Tem muito a ver se tivermos em conta a dupla questão de Hardin, sempre que se fala do sistema político-económico de distribuição e gestão dos recursos, bem como a questão da responsabilização. Quem beneficia? Quem paga? Respondendo a esta questão podemos verificar que nuns casos – nos casos em que os benefícios e os custos estão conjugados no mesmo actor – o mecanismo é a privatização. Nos casos em que os benefícios e os custos são distribuídos de forma desigual pelos gestores, burocratas e políticos, o mecanismo de distribuição é socialista ou socializante. O terceiro mecanismo, a comunização (cuidado! Não confundir com comunismo, no sentido de socialização dos meios de produção), é isto que predomina em Moçambique, em que se considera o bem público, os recursos de todos, de ninguém em particular, mas na prática fica distribuído de forma completamente descoordenada e sem regras claras, dependendo dos poderes de influência no dia.
Em qualquer sociedade, os direitos de propriedade servem para regular e gerir os recursos materiais e financeiros. Os direitos de propriedade funcionam em relação aos recursos como uma espécie de código de estradas aplicado na regulação da circulação dos automobilistas e trânsito nas estradas. Se em vez de regras claras de trânsito, circulamos num ambiente com regras confusas, ou dependentes da arbitrariedade de cada condutor; se um automobilista acha que na estrada, por ser de todos e de ninguém, ele tem mais direito de conduzir como quer, porque é mais velho, ou sempre viveu naquela zona, ou por qualquer outro critério arbitrário, a circulação livre e desregulada facilmente tenderá para a confusão. Se cada um segue as regras que melhor entender e lhe apetecer, por se achar mais ou menos importante, mais ou menos dono da via pública; por ser dirigente ou governante, levando-o a pensar que aquilo que faz é mais urgente e importante do que o que é feito pelos dirigidos ou governados; se essa é a lógica, então, a estrada, as auto-estradas públicas, acabam por ser tomadas pela utilização abusiva e ficam sob utilização sem controlo. O mesmo tende a acontecer com muitos outros bens. E no caso da chamada “coisa pública” fica sujeita ao acesso livre e demanda desregulada.
Canal – A questão final. O que é que tudo tem a ver com a sua pesquisa como investigador?
AF - A minha investigação incide na questão da protecção social, a qual entendo como o conjunto de mecanismos que permitem às pessoas libertarem-se no medo da insegurança pessoal e da carência. Protecção social como mecanismo de assegurar um padrão de vida digna, no ciclo da vida pessoal. Ora, para tal, a segurança dos direitos individuais e da propriedade privada é fundamental. Se o Estado não defende a pessoa da insegurança pública e, em vez de defender a propriedade do cidadão, usurpa-a, rouba-a e ataca o cidadão, então, esse Estado está contra o cidadão e não haverá protecção social nem segurança humana. (Fernando Veloso)

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